quarta-feira, 26 de junho de 2024

UM CONTO DE FLORES

Em uma aldeia na entrada das terras do reino da Vitória Régia havia uma rua muito conhecida pelos viajantes e mercadores. Depois de longas viagens por estradas perigosas e caminhos íngremes, ali encontravam uma aconchegante hospedaria e uma movimentada taberna, onde achavam pousada e alimento. Os homens se aglomeravam alegres e faziam grande algazarra. Quem passava por ali sentia a festiva agitação e o rebuliço constante.
Porém, na medida que se adentrava pela rua, todo aquele clima de festa desaparecia, dando lugar a um ambiente pobre e sombrio. E lá no fundo, encostada no muro de um castelo em ruínas, havia a choupana de um humilde carvoeiro. Aos trinta e cinco anos, já parecia um velho, devido ao seu trabalho. Ele morava com a mulher, a filha de quinze anos e oito filhos mais novos.
A filha do carvoeiro, Hortênsia, desde cedo teve que trabalhar com muita dureza, ajudando sua mãe, a lavadeira Magnólia, nos serviços domésticos da casa. Logo que amanhecia, tinha que acender o fogo, preparar as parcas refeições para a família e cuidar dos irmãos mais novos. Quando não havia o que comer, saia como uma mendicante pelas ruas da aldeia em busca de alimentos. Muitas vezes ia pegar os restos de comida que eram jogados por trás da taberna. Sentia-se envergonhada, mas já tinha ouvido várias vezes o pároco dizer na igreja que a pobreza era a vontade de Deus e a verdadeira riqueza seria encontrada no reino celestial.
Contudo, apesar de toda esta vida de penúria, Hortênsia era uma moça cheia de esperanças. Romântica, vivia sonhando com uma festa de aniversário cheia de doces em um castelo rodeado de flores. Todos os anos era a mesma coisa, a mesma ilusão! E a cada ano seu aniversário passava sem um doce sequer.
De vez em quando, Hortênsia via partir da taberna, carroças carregadas de cestas com doces de diversos sabores. Em outras ocasiões, carruagens bem ornamentadas vinham pegar encomendas enormes. Nestes casos, ela sabia que elas iam para as festas dos nobres nos castelos e até mesmo para o palácio do rei. Lá, os aniversários do rei, da rainha, príncipes e princesas eram comemorados com grandes banquetes e bailes, onde haviam tantos doces que até se estragavam.
Além de desejar muito uma festa repleta de doces, Hortênsia sonhava com as estórias que ouvia pela aldeia. Sempre que havia festas religiosas ou folguedos populares, apareciam companhias de saltimbancos ou grupos de trovadores, que encenavam ou recitavam belas estórias, como as que tinham fadas madrinhas socorrendo suas protegidas. Porém, nessas estórias, sempre as personagens principais eram princesas deslumbrantes que no final se casavam com príncipes maravilhosos e vivam felizes para sempre em lindos castelos. Quando sua mãe a ouvia falar sobre contos de fadas e princesas dizia:
 Acabe com isso. A vida não é um conto de fadas! Os ricos vivem em um mundo de flores, mas para os pobres só restam os espinhos. Olhe para mim. Vivo lavando roupas nos castelos dos ricos e eles sequer me olham. Para os ricos, nós não temos nenhum valor!
Hortênsia já estava prometida em casamento para o filho de Jacinto, um lenhador conhecido do seu pai. Porém, ela não sabia quem era o rapaz e tremia de medo só de pensar em ser entregue a um brutamonte. Já tinha visto outras meninas serem dadas em casamento e levadas à força por seus maridos.
Hortênsia ia fazer dezesseis anos e este seria seu último aniversário com a família. Sua mãe tinha lhe dito que seu casamento já estava arranjado. Mais do que nunca, ela queria comemorar o aniversário com uma festa repleta de doces. Porém, na sua data natalícia, ela viu a dura realidade de sempre.
Naquele dia Hortênsia acordou cedo e acendeu o fogo. Quase não havia víveres em casa. Seu pai comeu um pedaço de pão bolorento, tomou água de um odre velho e saiu para o trabalho. O dia foi passando no mais absoluto marasmo. Hortênsia ajudou a mãe nos afazeres domésticos, cuidou dos irmãos mais novos e saiu para perambular pela aldeia em busca de algo para comer. Quando passou pela taberna viu uma carruagem abarrotada de cestas de doces partindo em direção à cidade. Seus olhos brilharam de desejo e seu estômago revirou de fome. E assim a jovem ia passar mais um aniversário!
Porém, quando a carroça ia contornando uma colina e descendo em direção ao exuberante vale do rio Cravo, parou e retornou em direção à aldeia. Um arauto do rei, que trouxe a ordem do palácio real, aproximou-se gritando:
 Por ordem da princesa Azaleia o carregamento de doces para sua festa de dezesseis anos deve ser devolvido na taberna e entregue a uma aldeã pobre. Ela está fazendo isto em pagamento a uma promessa pela recuperação da senhora sua mãe, a rainha Gardênia. A rainha esteve gravemente enferma, mas hoje, depois de vários meses, conseguiu levantar-se do leito.
Ao ouvir o arauto, um rapaz adiantou-se, dirigiu-se ao cocheiro real e disse:
 Há uma jovem na aldeia fazendo dezesseis anos exatamente hoje. É justo, digníssimo cocheiro real, que ela seja merecedora de tão gostosas guloseimas! Não estou com brincadeiras. Eu mesmo o levarei à casa da mais bela moradora desta aldeia, que serve ao nosso rei com toda lealdade!
Ao ver as cestas de doces devolvidas na taberna, Hortênsia não entendeu o que estava acontecendo. Também ficou completamente envergonhada quando o jovem desconhecido se aproximou dela e falou-lhe:
 Sei que estás fazendo dezesseis anos hoje, pois isto ouvi do teu pai, o carvoeiro Gerânio. E já que a princesa está doando os doces do aniversário dela, é justo que sejam para ti. Convenci o cocheiro e o arauto real a doarem para festejares teu aniversário. Hoje terás uma festa de princesa!
Com todos olhando para ela, Hortênsia ficou envergonhada. Correu para casa e contou sobre as cestas de doces. Avistando o jovem, sua mãe disse-lhe:
 Ele é o jardineiro do castelo do conde Delfino. Chama-se Antúrio e foi com ele que teu pai acertou teu casamento. Não te preocupes, pois ele é muito cortês.
Foi o aniversário mais feliz da vida de Hortênsia! E diferentemente do que temia, o homem para o qual estava prometida não era um brutamonte. Dois meses depois casaram-se e tiveram cinco filhos e quatro filhas: Aliso, Jasmim, Crisântemo, Amaranto, Narciso, Margarida, Pétala, Rosa e Tulipa. Foram muito felizes, pois Antúrio, zeloso e trabalhador, nunca deixou faltar víveres em sua casa, ao lado da qual plantava muitas flores.
E Hortênsia, que sonhava com um conto de fadas, teve um conto de flores e uma vida florida para sempre!


SOBRE O AUTOR

Natural de Jaboatão, Pernambuco. Filho de Manoel e Marina Lima, casado com Alcione Lima e pai de Anália Rebeca e Areli Suzana. Formado em Administração, Teologia e História. Professor na Escola Monsenhor Arruda Câmara (EMAC) e pastor da Igreja Batista, em Sítio Novo, Olinda. O escritor Marinaldo Lima conta com diversos prêmios nacionais em concursos literários de contos e poemas.

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Conto publicado na coletânea do Concurso de Contos da Editora Philia 2023.  

ALVOROÇO NA PENITÊNCIA

Belos tempos os das penitências. Nesta época de calor o sol escaldante o dia até fica enorme e até se transforma em fogão... Uns dizem: “tem um sol pra cada um”; e outros: ”Este sol dá pra fritar até ovos no asfalto.” E assim vamos suportando a temperatura de acordo com o tempo tem aquele que se ajoelha e: ”O que Deus manda a gente tem suportar.”
no povoado do Capão de Dentro, onde os mais antigos ainda se reúnem neste tempo de calor, ainda se fazem a penitência e os fiéis da Capela de Nossa Senhora do Amparo e o se Padre reúnem e ainda convida os moradores das redondezas, para realizar aquele ato de fé. Molhar o cruzeiro para a chuva cair em abundância.
O Seu Tinôco que é festeiro e Sacristão da Capela e já ordenou:
— Óia gente. Nóis vai sigui o istradão do Riacho Fundo. O Pade Jeremia vai isperá nóis lá. Vamo rezano frevorosamente. Chegano lá, nóis enche as muringa d’água e segue inté o cruzêro.
A Dona Idalina, esposa do Seu Joaquim Birita, este, gostava de uma cachaça e tudo pra ele era motivo para tomar uma. Ela foi logo entrando na conversa:
—  Juaquim, tá iscuitano? Vamo rezá cum fé e nada de bebedêra, quando a gente passá perto da Venda do Seu Zé Catira ocê nem óia.
O Joaquim Birita só sacudiu a cabeça. Já com a moringa na mão, ele seguiu a multidão. Só que o sol estava muito quente, ele virava a moringa no queixo e alguns observando aquilo, lembraram-se da fala do Sacristão e que a água seria apanhada no Riacho Fundo.
O João Pé de Cana, outro marafeiro, vendo aquilo logo sentiu sede repentinamente e:
— Nossa gente, que sede! Ô Juaquim, me dá um gole dessa sua água, senão vou desmaiar?
O Joaquim sem saída lhe entregou a moringa. Quando ele deu aquela golada, era cachaça. E ele para não dedurar o Joaquim e também ficar sem a danada pelo caminho agradeceu:
— Nossa que água gostosa sô! É de vereda, Juaquim?
Pensa no aperto que ficou o Joaquim. E ele:
 É. E peguei ela bem cedim. Tá fresquinha!
Ouvindo aquilo os fiéis alvoroçaram e a seda foi geral e vendo que a coisa não ia ficar bem, os dois caíram no mato numa correria desenfreada.
no pé da Serra do Tamanduá, eles pararam para descansar e tomar mais uma. Lógico. E quem vem lá com a batina toda empoeirada e todo suado? Isso mesmo: o Padre Jeremias. E vendo os dois debaixo da sombra fresca da Aroeira:
—  Joaquim e João. Graças a Deus encontrei vocês. Estou numa sede danada. Passa-me essa moringa pra eu beber um poço dessa água.
E agora?
O Joaquim e o João com a moringa de cachaça e qual a desculpa?
O Padre afoitamente pega a moringa da mão do João e dá aquela golada. Os dois com as mãos nos olhos e com medo. E o Padre:
—  Uai! Eu não sabia que vocês também gostavam de um golinho!
Os dois boquiabertos, falaram ao mesmo instante:
— Pade! O sinhôre tomém bebe?
O Padre já animado:
— Meus filhos! O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem. Vamos pra penitência.
Chegando ao Riacho Fundo, foi aquele alvoroço e a Dona Idalina xingando o Seu Joaquim e o Berranteiro Josué queria esganar o João. E o Padre:
—  Meus irmãos! Ouçam... Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra. ' (Jo 8,7).
Foi um silêncio profundo e o Padre continuou:
—  Vamos encher as moringas, Menos a do Joaquim. Ela tá furada.
Seguiram com as orações nos lábios e ao chegarem ao cruzeiro foi aquela fé gigante.
Voltaram pra casa e dentro de poucos minutos a chuva veio em abundância. O Padre Jeremias chamou o Joaquim e o João para se confessarem e o João:
—  Pade. Me perdoa. Mais eu góstio duma alambicada.
O Padre consentiu com o gesto e o Joaquim logo se apresentou para confessar e:
—  Pade. Pode castigá nóis.
O Padre olhou para um lado e para o outro e disse bem baixinho:
—  Não meu filho! Mas, vê se você leva o tira-gosto da próxima vez!
Tudo terminou bem, o Sacristão ficou feliz, a lavoura em abundância, Dona Idalina perdoou o Seu Joaquim, e o Seu João chegou feliz em casa.
Dizem que o Joaquim e o João são os novos sacristãos da capela.
Será que deixaram de beber? O estoque de vinho do Padre Jeremias é grande.
Agora é aguardar a tão badalada Festa da Lavoura. E dizem que o Raimundo do Bento e a Benedita vão carregar o estandarte de São José. O santo fazedor de chuva.
Estou pensando em ir também. E você?
Coisas do sertão!


SOBRE O AUTOR

Antônio de Fátima Silva, o Mestre Tinga das Gerais, natural de Corinto-MG, poeta, ator e cantor e na estrada há 35 anos. Participou de vários festivais, sendo premiado com o conto "O Caboclo e o Barranqueiro", atuou no curta-metragem "Um outro Tiradentes" e no longa "A História das Três Marias", da cineasta Zakia Daura.

                                             
                                                   FORMA ANÔNIMA

A noite flerta com o frio receoso,
Chá na caneca com estampa de cinema
Onde busco uma película para te resumir.
Cervantes me lembra que apesar dos dragões
Minha Dulcineia Del Toboso
me espera escutando La Oreja de Van Gogh
Ilustrando canções que febrilmente e de forma anônima
dedico a ti.

Poema FORMA ANÔNIMA, do escritor Daniel Machado (Geógrafo da Alma!).