TESOURA (Parte I)
Não precisava de despertador para acordar. Ainda não amanheceu e
ele abre os olhos, como se saísse de um sono sem sonhos. As dores no quadril
acordam com ele, que fricciona a lateral do corpo mais dolorida e, lentamente,
inicia o processo de levantar da cama de colchão velho e com a espuma
enfraquecida. Já faz uns anos que, ao levantar, olhava para o lado da cama
vazio. É só por um instante que se permite. Lá fora, ouve a chuva caindo
suavemente sobre a plantação de milho. Levanta, pega algumas roupas, vai até o
chuveiro, seu corpo magro e ossudo dói em alguns lugares além do quadril. Toma
banho, escova os dentes de que tem orgulho. Tem quase todos e já está com quase
oitenta anos. Depois, já seco, penteia os cabelos brancos e ralos, faz a barba
com cuidado, deixando apenas o bigode amarelado pela nicotina. Veste calças de
linho curtas, uma camisa branca cujo tecido gasto é quase transparente. Chove,
mas está abafado. É verão, ainda que seja um verão com um clima que parece o
outono, a temperatura ainda é alta. Por fim, calça as alpargatas velhas. Só
então vai à cozinha onde prepara café preto que bebe acompanhado de pedaços de
pão de milho e erva doce.
Vai para a frente da casa, onde sua cadeira está ocupada pelo gato. Ele nunca deu nome ao gato cinzento, às vezes acha que o animal sempre esteve por ali, mas é porque sua memória já não é mais tão boa. Ele ergue o animal até a altura de seus olhos, que o encara preguiçosamente, sem se opor. Depois o coloca no chão com delicadeza. O bichano se deita ao lado da cadeira, onde colocou um tapete. Senta-se na cadeira, observa a chuva caindo no pátio que precisa ser mais bem cuidado. Ao lado, à esquerda, sua plantação de milho. Teve que pedir que o ajudassem. Não tinha forças, a dor no quadril, a coluna reclamando. Era isso ou nada. Optou pelo pedido, pagou o serviço, teria que pagar para que colhessem. Voltou à cozinha, aqueceu a água em uma chaleira velha, fez um chimarrão, voltou à cadeira. Antes disso, pegou um petisco e deu ao gato. Ficou parado na porta enquanto via o bichinho comendo com voracidade. Será que é velho como eu esse gato? Tinha ouvido alguém dizer que esses animais podiam viver anos e anos. Talvez seja então, porque não me lembro de quando ele veio pra cá... Deve ser.
Sentou-se, encheu a cuia com água quente, as bolhas subindo enquanto fazia isso, a erva de desmanchando do monte, mas apenas o necessário, sugou o sabor amargo do mate, o som da chuva continuou. Plic, plic, plic caindo pela calha em um balde com uma arvorezinha. Sozinho ali, observando a chuva, a estrada, o campo a sua frente. De tempos em tempos um carro passava na estrada de terra cheia de buracos. Era uma linha reta ali, mas os buracos faziam os motoristas fazerem curvas, tentando evita-los, sem muito sucesso. Ficou ali, sentado, as canelas brancas e magras a vista, a calça era a curta, não tinha outra. Não se importava muito com isso. Àquela altura da vida não se importava com muita coisa. Talvez com a dor no quadril, mas melhorava, só precisava se mexer. Encheu outra cuia, ficou segurando-a sem beber.
Atravessando a estrada com um casaco sobre a cabeça, vinha uma vizinha. Passou por todas as poças com pequenos pulos, passou pelo portão que era preso por um pedado de corda e depois veio até a entrada da casa. Era jovem, já a vira algumas vezes nos últimos dias, mas nunca tinha falado com ela.
— Oi!
— Oi. — A voz rouca de quem pouco a usa.
— O pai pediu pra perguntar pro senhor se tem uma tesoura de poda.
Levantou-se sem dizer nada. Foi aos fundos da casa, deixando a menina na entrada. Ficou ali por um tempo, procurando, procurando. Encontrou em uma das caixas mais ao fundo, junto com algumas roupas que ele não conseguiu doar ou jogar fora. Tinha um vestido branco, cheio de grinaldas. Olhou, ficou ali parado, tesoura na mão.
— Moço?
Parecia tão longe, já não ouvia bem, mas a voz se aproximou e ele voltou ao presente. Olhou cansado para trás, a menina tinha vindo atrás dele. Devia ter uns quinze anos, tinha os olhos muito escuros que faziam um contraste interessante com os cabelos louros que guarneciam sem rosto redondo.
— Achei a tesoura. — Disse entregando o objeto.
Vai para a frente da casa, onde sua cadeira está ocupada pelo gato. Ele nunca deu nome ao gato cinzento, às vezes acha que o animal sempre esteve por ali, mas é porque sua memória já não é mais tão boa. Ele ergue o animal até a altura de seus olhos, que o encara preguiçosamente, sem se opor. Depois o coloca no chão com delicadeza. O bichano se deita ao lado da cadeira, onde colocou um tapete. Senta-se na cadeira, observa a chuva caindo no pátio que precisa ser mais bem cuidado. Ao lado, à esquerda, sua plantação de milho. Teve que pedir que o ajudassem. Não tinha forças, a dor no quadril, a coluna reclamando. Era isso ou nada. Optou pelo pedido, pagou o serviço, teria que pagar para que colhessem. Voltou à cozinha, aqueceu a água em uma chaleira velha, fez um chimarrão, voltou à cadeira. Antes disso, pegou um petisco e deu ao gato. Ficou parado na porta enquanto via o bichinho comendo com voracidade. Será que é velho como eu esse gato? Tinha ouvido alguém dizer que esses animais podiam viver anos e anos. Talvez seja então, porque não me lembro de quando ele veio pra cá... Deve ser.
Sentou-se, encheu a cuia com água quente, as bolhas subindo enquanto fazia isso, a erva de desmanchando do monte, mas apenas o necessário, sugou o sabor amargo do mate, o som da chuva continuou. Plic, plic, plic caindo pela calha em um balde com uma arvorezinha. Sozinho ali, observando a chuva, a estrada, o campo a sua frente. De tempos em tempos um carro passava na estrada de terra cheia de buracos. Era uma linha reta ali, mas os buracos faziam os motoristas fazerem curvas, tentando evita-los, sem muito sucesso. Ficou ali, sentado, as canelas brancas e magras a vista, a calça era a curta, não tinha outra. Não se importava muito com isso. Àquela altura da vida não se importava com muita coisa. Talvez com a dor no quadril, mas melhorava, só precisava se mexer. Encheu outra cuia, ficou segurando-a sem beber.
Atravessando a estrada com um casaco sobre a cabeça, vinha uma vizinha. Passou por todas as poças com pequenos pulos, passou pelo portão que era preso por um pedado de corda e depois veio até a entrada da casa. Era jovem, já a vira algumas vezes nos últimos dias, mas nunca tinha falado com ela.
— Oi!
— Oi. — A voz rouca de quem pouco a usa.
— O pai pediu pra perguntar pro senhor se tem uma tesoura de poda.
Levantou-se sem dizer nada. Foi aos fundos da casa, deixando a menina na entrada. Ficou ali por um tempo, procurando, procurando. Encontrou em uma das caixas mais ao fundo, junto com algumas roupas que ele não conseguiu doar ou jogar fora. Tinha um vestido branco, cheio de grinaldas. Olhou, ficou ali parado, tesoura na mão.
— Moço?
Parecia tão longe, já não ouvia bem, mas a voz se aproximou e ele voltou ao presente. Olhou cansado para trás, a menina tinha vindo atrás dele. Devia ter uns quinze anos, tinha os olhos muito escuros que faziam um contraste interessante com os cabelos louros que guarneciam sem rosto redondo.
— Achei a tesoura. — Disse entregando o objeto.
Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plagg: o Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).
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Conto do autor TESOURA.
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