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sábado, 5 de abril de 2025

 

TESOURA (Parte I)

Não precisava de despertador para acordar. Ainda não amanheceu e ele abre os olhos, como se saísse de um sono sem sonhos. As dores no quadril acordam com ele, que fricciona a lateral do corpo mais dolorida e, lentamente, inicia o processo de levantar da cama de colchão velho e com a espuma enfraquecida. Já faz uns anos que, ao levantar, olhava para o lado da cama vazio. É só por um instante que se permite. Lá fora, ouve a chuva caindo suavemente sobre a plantação de milho. Levanta, pega algumas roupas, vai até o chuveiro, seu corpo magro e ossudo dói em alguns lugares além do quadril. Toma banho, escova os dentes de que tem orgulho. Tem quase todos e já está com quase oitenta anos. Depois, já seco, penteia os cabelos brancos e ralos, faz a barba com cuidado, deixando apenas o bigode amarelado pela nicotina. Veste calças de linho curtas, uma camisa branca cujo tecido gasto é quase transparente. Chove, mas está abafado. É verão, ainda que seja um verão com um clima que parece o outono, a temperatura ainda é alta. Por fim, calça as alpargatas velhas. Só então vai à cozinha onde prepara café preto que bebe acompanhado de pedaços de pão de milho e erva doce.
Vai para a frente da casa, onde sua cadeira está ocupada pelo gato. Ele nunca deu nome ao gato cinzento, às vezes acha que o animal sempre esteve por ali, mas é porque sua memória já não é mais tão boa. Ele ergue o animal até a altura de seus olhos, que o encara preguiçosamente, sem se opor. Depois o coloca no chão com delicadeza. O bichano se deita ao lado da cadeira, onde colocou um tapete. Senta-se na cadeira, observa a chuva caindo no pátio que precisa ser mais bem cuidado. Ao lado, à esquerda, sua plantação de milho. Teve que pedir que o ajudassem. Não tinha forças, a dor no quadril, a coluna reclamando. Era isso ou nada. Optou pelo pedido, pagou o serviço, teria que pagar para que colhessem. Voltou à cozinha, aqueceu a água em uma chaleira velha, fez um chimarrão, voltou à cadeira. Antes disso, pegou um petisco e deu ao gato. Ficou parado na porta enquanto via o bichinho comendo com voracidade. Será que é velho como eu esse gato? Tinha ouvido alguém dizer que esses animais podiam viver anos e anos. Talvez seja então, porque não me lembro de quando ele veio pra cá... Deve ser.
Sentou-se, encheu a cuia com água quente, as bolhas subindo enquanto fazia isso, a erva de desmanchando do monte, mas apenas o necessário, sugou o sabor amargo do mate, o som da chuva continuou. Plic, plic, plic caindo pela calha em um balde com uma arvorezinha. Sozinho ali, observando a chuva, a estrada, o campo a sua frente. De tempos em tempos um carro passava na estrada de terra cheia de buracos. Era uma linha reta ali, mas os buracos faziam os motoristas fazerem curvas, tentando evita-los, sem muito sucesso. Ficou ali, sentado, as canelas brancas e magras a vista, a calça era a curta, não tinha outra. Não se importava muito com isso. Àquela altura da vida não se importava com muita coisa. Talvez com a dor no quadril, mas melhorava, só precisava se mexer. Encheu outra cuia, ficou segurando-a sem beber.
Atravessando a estrada com um casaco sobre a cabeça, vinha uma vizinha. Passou por todas as poças com pequenos pulos, passou pelo portão que era preso por um pedado de corda e depois veio até a entrada da casa. Era jovem, já a vira algumas vezes nos últimos dias, mas nunca tinha falado com ela.
 Oi!
 Oi.  A voz rouca de quem pouco a usa.
 O pai pediu pra perguntar pro senhor se tem uma tesoura de poda.
Levantou-se sem dizer nada. Foi aos fundos da casa, deixando a menina na entrada. Ficou ali por um tempo, procurando, procurando. Encontrou em uma das caixas mais ao fundo, junto com algumas roupas que ele não conseguiu doar ou jogar fora. Tinha um vestido branco, cheio de grinaldas. Olhou, ficou ali parado, tesoura na mão.
 Moço?
Parecia tão longe, já não ouvia bem, mas a voz se aproximou e ele voltou ao presente. Olhou cansado para trás, a menina tinha vindo atrás dele. Devia ter uns quinze anos, tinha os olhos muito escuros que faziam um contraste interessante com os cabelos louros que guarneciam sem rosto redondo.
 Achei a tesoura.  Disse entregando o objeto.

 (Continua...)


Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  
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Conto do autor TESOURA.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

 

RECORTE

Passa das dez da manhã e, naquele horário, o fluxo de automóveis é constante, barulhento. Olho para o prédio residencial à minha frente, um daqueles imóveis antigos, com bem mais de meio século, construído em uma época em que o trânsito não era um problema, em que carros eram artigos de luxo. As sacadas, em sua maioria, têm vasos de plantas, flores e outros adereços. Meus olhos fitam uma sacada em especial, vazia, sem nada que a destaque das demais. Confiro o molho de chaves, escolho a maior, aquela que abre o portão de entrada. O barulho do trânsito segue intenso enquanto entro no prédio em silêncio.
Não há ninguém na portaria, tampouco encontro algum morador no caminho até o elevador. Pressiono o botão de número doze, pouco depois estou em frente à porta do apartamento. Nova conferência nas chaves, escolho a vermelha. Ouço um clique suave ao abrir a porta, mas não entro de imediato. Sinto o cheiro fraco de perfume, quase tudo lá dentro está coberto pelas sombras, alguns  poucos — locais recebem fachos de luz da rua, pelas frestas das cortinas. Avanço, não sem antes pedir em voz baixa, com licença. 
É um apartamento bonito, simples e prático, o hall de entrada tem uma mesinha com uma pequena bandeja, que é onde deixo as chaves, dando-me conta de que aquilo já deve ter ocorrido inúmeras vezes. Na parede do hall há um espelho redondo, com entalhes em madeira muito bem trabalhados. Ao lado da mesinha, um par de pantufas brancas pequenas descansam sobre um tapete. Deixo meus sapatos ao lado das pantufas, entro na sala com os pés descalços. 
Estar aqui, nesse lugar, é como entrar em um reino íntimo ao qual não fui convidado, sei que sou um intruso aqui. Na sala pequena, um sofá de armação de madeira, almofadas com estampas florais estão amarradas por fitas em seus lastros. Outro tapete jaz em frente ao móvel. Depois, uma televisão em um rack, o controle remoto jogado sobre o sofá. Abro as cortinas, o sol da manhã invade o lugar, talvez a luz seja mais bem-vinda do que eu. Quero ir embora, mas preciso ficar. Retiro a mochila que trago em minhas costas, pego um notebook, faço anotações, olho novamente para o cômodo, vejo um porta-retratos ao lado da tevê. É uma imagem em branco e preto e atrás do porta-retrato, escrito à caneta, uma data, um local. Búzios, 2018. Não faz tanto tempo, os sorrisos aqui, nessa foto, duram para sempre. 
Fico parado na sala por um tempo, tentando ver o que acontecia aqui, é tudo tão tranquilo, tão calmo. Não há vida aqui, eu lembro, só a memória. Levanto-me, vou à cozinha, dentro da pia de alumínio há uma xícara não lavada junto de uma colher. Depois eu lavo, é o que aquilo me diz. Na geladeira, poucas coisas, verduras escurecidas pelo tempo, potes com alimentos congelados, a comida da semana. Mais à vista, uma fatia de torta de banoffe pela metade. A cozinha e a área de serviços são contíguas, vejo a máquina de lavar junto de um cesto cheio de roupas. Haveria tempo, imagino. Quando voltar, eu lavo. Vou esperar ter mais roupas, lavar tudo de uma vez apenas. Ou, talvez, não quero fazer isso hoje. Talvez seja essa a resposta. 
Ainda há mais a ser visto.
O banheiro é pequeno, tem um box de vidro esverdeado. Dentro do box, vários xampus e condicionadores, um sabonete. No regulador de água, uma calcinha repousa. Quase peço desculpas. Me volto para a pia ao lado do vaso, acima dela, um armário com espelho que inspeciono sem mais olhar para o box. Tantos remédios. Ansiolíticos, antidepressivos, remédios para dores de vários tipos. É tudo tão simples, tão desconfortável. 
Penso em encerrar a visita, sair dali, daquele apartamento, daquele prédio. Daquele mundo inteiro em poucos metros quadrados. Mesmo pensando em tudo isso, vou até o quarto, com um roupeiro pequeno, uma cama box com lençóis desarrumados, todos florais, o lençol inferior, com elástico, também solto sobre a cama. Tudo mais fora do quarto, tão organizado. Sobre a cômoda, ao lado da cama, um rádio relógio quebrado. Na parede acima do box, há um quadro com uma fotografia ampliada. O vidro que a recobria está rachado, alguns cacos de vidro estão caídos sobre os lençóis. Vejo o casal que havia na foto, com rasgos aparentes, destruindo um momento bonito preso no passado. Agora, nesse instante, não há um “momento” só rastros de um tempo recente, muito diferente daquela imagem. 
Quando aconteceu, naquele dia, eram seis da manhã, o barulho do trânsito não era tão intenso, não havia tantas pessoas na rua. A sacada, o último lugar para onde vou, é estéril, destoante de todas as outras sacadas, tão verdejantes naquele ambiente urbano e sujo de fuligem. Há duas cadeiras, uma bem rente à parede e outra, como um degrau, muito perto do parapeito. Não há mais detalhes, apenas a cadeira, o que sua posição sugere. Não sei o que houve naquela noite, sei que ela se revolveu na cama. Por muitas horas antes de amanhecer. Sei que se decidiu de súbito. 
Não fico muito mais tempo. Apago as luzes, fecho a porta. 
De volta à portaria, uma senhora me cumprimenta, pergunta quem sou, nunca me viu no prédio. Mostro meu documento enquanto explico de forma sucinta, me preparando para deixar o local. A mulher comenta. 
 Tão nova, não é?
 A senhora à conhecia?
 Não, ela era esquisita, nunca quis assunto com ela.
 Talvez tenha sido isso então.   Comento sem pensar.
 Perdão?
 Não foi nada.
Ouço o barulho do trânsito, observo uma última vez aquele prédio e suas sacadas. Em meio ao caos urbano, aquele foi só mais um dia comum, ordinário. Aquele recorte passou despercebido. Na memória dos que a viram, restou apenas o impacto ao atingir o solo.

Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plagg: o Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  
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Conto postado, em 22 de julho de 2024, pelo autor, em sua página no facebook.