domingo, 28 de julho de 2024


O PIONEIRO DO PASSO DO FEIJÓ

Quando o velho Manoel cruzou o arroio pela última vez, no inverno de 1835, aquele curso d'água já levava seu nome. O cavalo tobiano conhecia o ritual: chegou sem pressa e parou para beber das águas geladas e cristalinas, enquanto o velho contemplava seus campos. Desta vez, porém, Manoel estendeu a vista para o leito do Arroio Feijó, que avançava devagar e sem pausas. "Como o tempo", pensou.
Manoel de Souza Feijó fora pioneiro naquelas terras. Soldado nascido em 1753 na ilha açoriana de São Miguel, com 27 anos apeou naquele ponto dos campos de Viamão, entre o Porto dos Casais e a Aldeia dos Anjos. Dedicou seus melhores anos a desbravar cada palmo, desde que sua majestade lhe concedeu a quadra de terras, em 1780. Veio para o Brasil encorajado pelo ciclo do ouro, mas suas incumbências o levaram para bem longe das minas. No Continente de Rio Grande de São Pedro, a coroa portuguesa havia consolidado a estratégia de povoamento e, com a invasão castelhana, em 1763, acelerou a distribuição de terras a militares, como forma de garantir a posse e a defesa dos territórios contra uma nova invasão.
Voltou a montar, ajudado pelo neto Francisco Ramires. Avançou pela estrada até a forquilha, mas não desceu em direção à sede. Seguiu à direita, em direção aos pés de cocão, por meia légua. Queria ver a prainha, como chamava a lagoa na subida da coxilha. A paisagem lhe tocava fundo na alma. Ali ensinara os filhos a nadar, gostava de levar os netos nos dias de verão.
Mas ainda lhe doía a saudade das tardinhas ali com Inácia Felícia, sua primeira esposa. Foram quarenta anos divididos com ela antes de enviuvar, em 1822.
Chegaram em casa já com a lua nos calcanhares. Claudina Maria os recebeu no pátio, advertindo Manoel com falsa indignação. Sabia que ele estava muito doente, mas sabia também que aos 82 anos não se põe cabresto em ninguém. O pequeno Francisco correu pra abraçar o pai. Era o último dos dezoito filhos.
A doença evoluiu rápido. Nas semanas seguintes, Manoel não pôde sair da estância e, em meados de agosto, já não saía da cama. Recebeu muitas visitas de familiares e vizinhos. O Pe Bartolomeu, pároco da Igreja Matriz de Viamão, onde casou e batizou os filhos, lhe concedeu distinção ao celebrar missa na sede da fazenda.
Uma tarde, recebeu Angelo Inácio de Barcelos e a esposa, Alexandrina. Estavam felizes, esperando o segundo filho. Claudina perguntou pelos nomes. "Se for menino, terá o nome do avô paterno, Diogo Inácio. Se for menina, será Ana Inácia, como minha mãe" disse Alexandrina. Embora as terras para lá das figueiras pertencessem ao falecido Diogo Inácio de Barcelos, este pouco vinha àqueles lados. Aparentemente, Angelo havia herdado aquele pedaço, mas tampouco lhe dava uso.
Após o café, Angelo sentou a sós com o velho. Queria se aconselhar a respeito de um assunto. Estava preocupado com o clima político na província. Os estancieiros, principalmente do sul, estavam descontentes. Nos últimos meses, houve reuniões na casa do Gomes Jardim, na freguesia das Pedras Brancas. Queria saber se os Souza Feijó haviam sido convidados e se pretendiam tomar partido.
Mas Manoel também estava inseguro sobre o que fazer. Sua condição mudara desde 1822. Após a independência, Dom Pedro havia tratado de garantir as concessões aos portugueses que viviam no Brasil. Mas Manoel sabia que, aos olhos do povo, seguia sendo um estrangeiro nessas terras.
Para piorar, o imperador abdicara ao trono em 1831. Seria prudente confrontar o império? Seu filho Desidério lutara na Guerra Cisplatina, pelo qual atingiu o posto de alferes do exército imperial. Com certeza sofreria sanções. Além disso, os oposicionistas representavam movimentos bastante diversos e mesmo antagônicos. Haviam imperialistas, republicanos, separatistas, abolicionistas, liberais e libertários. Essas alianças se sustentariam? Quais ideais prevaleceriam? Por outro lado, apesar de os rebeldes não terem apoio significativo em Porto Alegre, estavam geograficamente muito mais próximos. Se fossem vitoriosos, as consequências poderiam pesar sobre os indiferentes. Manoel rezava para que o entrevero se resolvesse no campo da política, e incentivou Angelo a fazer o mesmo.
Dias depois, pediu que lhe assentassem na varanda. Assistiu satisfeito ao rodeio improvisado pelos meninos Joaquim e Antônio, de seu casamento com Ana Maria. Perto dele, o pequeno Francisco retouçava com os cachorros. Claudina sentou-se ao seu lado com o mate e ouviu instruções a respeito do inventário. O velho não quis almoçar. Puxou a coberta. O vento fresco de início de setembro contrastava com o Sol, que amornava tudo que tocava. As árvores balançavam ritmadas e dos galhos se ouvia os pássaros saudando o fim do inverno. A sensação lhe aconchegou o coração. Teve sono. Adormeceu, sereno, e não tornou a abrir os olhos.
Duas semanas depois, grupos armados tomaram Porto Alegre, iniciando uma guerra que duraria dez anos.


SOBRE O AUTOR

Fabiano Soria Vaz é professor e pesquisador com artigos publicados no livro Raízes de Alvorada e no site A Trincheira - A História em debate em Alvorada. Mora em Alvorada, RS (dizedoria@gmail.com).

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Conto publicado em 2021, no livro CONTOS DE ALVORADA, coletânea lançada pelo Clube dos Escritores de Alvorada (editora meia-noite).

*Obra de ficção baseada em personagens reais e fatos históricos.

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