DERRAMOU
Eu é que não sirvo pra ser mulher de pinguço, minha mãe soprava aos quatro ventos. Conversava com as amigas no portão de casa, enquanto varria as folhas que caíam das árvores acima de nós. Cada dia era uma que chorava no portão, no assoalho, no nosso sofá. A reclamação era sempre a mesma: a pinga. Minha mãe repetia a sua romaria de que não casaria com marido que bebe, a ouvi falar com uma amiga:
— Carmem, meu pai era alcoólatra, agora tu imagina se eu caso com otro e começo a bebê?!
— Tu tem tanta sorte de tá sozinha Amara, lá em casa é um INFERNO! — chorava a outra.
— Não qué dizê que eu não me divirta só por que eu tô sozinha, eu não sô só mãe.
E assim a conversa rumava outras idas: paixões, desafetos, rumores e segredos. Conversas confidenciadas e que me deixavam o alerta: na vida valia tudo, menos a pinga, a cachaça tão comum entre os viventes. Eu nem tinha idade pra namorar e me pegava pensando nesse assunto: E eu, não vô podê bebê quando crescê? Se todo mundo faz, deve tê algo de bom.
Minha mãe ia ao samba toda a sexta-feira, desfilava, era a vedete da vila, a exibida com samba no pé. Foi ela quem me ensinou a dançar, a minha avó a ela, e assim por diante. Eu adorava as nossas tardes de domingo, dia de descansar e rodopiar juntas pela casa. Era um tal de "O chefe de polícia" e "Toda a menina baiana", na voz de Gilberto Gil. Mal sabíamos nós da profecia daquela primeira música. Tantas vezes mais tarde tivemos a nossa casa invadida pela polícia, pelos banzés causados pelo marido de minha mãe. Cada dia ou noite um problema. Primeiro éramos nós três, as guerreiras da casa: a avó, a mãe e a filha. Depois, no meio do samba, chegou o outro. Gingou a dança no nosso ritmo até mudar a cadência e nos tripudiar. Os pés que chegaram ágeis e com raízes sólidas, oscilavam no entrelaçamento do álcool.
Imbuído no líquido o homem era feito
brasa, consumia o que tocava: dinheiro, comida, roupas, gentes... Implodia cada
gesto à sua volta. Assim, aprendi a roubar dentro de casa, o lugar que
era meu refúgio quando pequena se tornou o não-lugar, o espaço
temido e de conflitos. Comecei surrupiando moedas de um
cinzeiro que ficava na prateleira da sala. Usava pra comprar
pão quando acabava, minha mãe agradecia pelo gesto. Das moedas fui para
as notas: 10, 20, 60, 200 reais. Eu sentia o peso nos bolsos como se cada
papel fosse impresso em chumbo. Eu só pilhava aquelas notas pra que não
passássemos fome. Um dia arroz com ovo, no outro arroz com tomate, eu
previa o cardápio para o dia seguinte: arroz e só. Se não fossem as minhas mãos
de pluma a sacar os valores, eles se transformariam em trago assim que
cruzassem o portão de casa para a rua. Amara, minha mãe, não podia trabalhar
pois cuidava dos dois guris menores. Não eram saudáveis, mais um motivo para
que eu afanasse mais, mais, mais e mais notas, precisávamos pagar os remédios.
Em uma de nossas tardes, um vendedor de porta bateu em nossa casa prometendo compartilhar conhecimentos de lugares diferentes do mundo todo, implorei à minha mãe que o deixasse entrar.
Fiquei tão maravilhada com o livro de 1.000 páginas que ela decidiu comprá-lo. O vendedor deixou-a pagar em 10 parcelas de 32 reais! Combinamos que ele viria às terças-feiras, no início da tarde, a garantia de que o homem da casa estaria no horário de trabalho. Eu seguia saqueando quantias para todas as nossas fomes. Eu precisava de outras sabedorias e minha mãe sabia disso. Na penúltima parcela, o homem cambaleante chegou mais cedo em casa e o vendedor se atrasou. Ambos se encontraram e trocaram meio dúzia de palavras. E assim começaram as brigas repletas de açoites, o homem que antes achava perder o dinheiro, agora entendia a presepada e pra abrandar usava a minha mãe. Esse foi um dos dias mais sofridos de minha vida. Nunca havia visto alguém pingando tanto. O sofrimento de minha mãe foi o meu sofrimento.
Depois desse episódio, comíamos uma vez ao dia e supus que teria que devolver o livro pago com os tostões malditos. A escassez dilatou e eu praguejava dia e noite: ai de mim sê igual a ele! Escamotear tornava cada momento mais intragável. Nas entranhas eu suplicava aos meus, que Mandela rompesse das páginas lidas e viesse em meu socorro como fazia com tantos outros. Uma vizinha soube do ocorrido e nos contou de uma ação do governo que auxiliava pessoas em condições como a nossa. Escondidas dos pés vagantes, fizemos o cadastro na prefeitura e, a partir disso, mostrávamos a bran- cura dos dentes. Uma vez na semana comíamos bifes de carne de gado, tudo no maior dos segredos. Passado algum tempo, juntando moedas ofertadas por minha mãe, comprei uma sandália laranja com cinza e verde, a mais linda que vi na vida! E assim continuamos, com a nossa vida paralela de pequenas alegrias.
Às vezes eu fantasiava que vivia numa casa de fadas, remontava o sentimento da época em que só havia as donas da casa. Minha avó me deu uma cama com baú que tinha um armário com fundo falso, eu fechava os olhos e imaginava que era uma passagem secreta, e que do outro lado haveria moedas de ouro, flores silvestres das mais coloridas e animais falantes. Rompia as noites nessa imaginação.
Havia dias que me encontrava cansada já pelas quatro da tarde, pois mal havia dormido na noite anterior sonhando com todas as riquezas da vida. Chamava o espaço do quarto reservado a mim de "Refúgio Feliz", um lugar só meu, de beleza e felicidade.
Minha mãe também encontrou o seu espaço de contentamento dentro de seu pensamento: estava decidida a voltar a sambar na rua. Comprou um tecido e as mulheres da casa, como dizia ela, se colocaram a costurar. Cosemos dois vestidos iguais: um para mim e outro para ela - que iria ao samba de final de semana. Queria tudo o que era dela e que com o tempo esqueceu de reivindicar! Bradejava. Alinhamos tecidos e fios durante duas semanas, entre as tarefas da casa e o cuidado com os filhos-irmãos. Minha avó, na sua tenra idade e tempo outro, bordou as mangas com adinkras de boa sorte. Um arranjo com pedrinhas douradas do tamanho de grãos de areia. Ao revoar soavam como gotas de orvalho caindo em folhas pela manhã. A cada ponto a avó contava uma história das mulheres que vieram antes dela e que lhe ensinaram cada movimento. Eu me enredava naqueles relatos e só saía de perto quando ela cansasse das agulhas.A noite do samba se fez. Eu escutava a música do pátio de casa e volteava com meus irmãos e minha avó. Que farra! O homem que se dizia dono da casa estava bebendo na rua e não sabia o que se passava dentro ou fora do nosso teto, melhor assim. Além de bater perna, minha mãe estava decidida a trabalhar. Já estava tudo arranjado: eu cuidaria de meus irmãos com a orientação de minha avó e minha mãe compraria comida e roupas novas, e ainda separaria um dinheiro para emergências. As ameaças de morte aconteceram quando quis ajudá-la nessa empreitada, na minha rotina ácida fiz folhas de cheques sumirem de um lado e reaparecerem de outro. Uma delas foi achada pelas pernas cambaleantes. Tudo por causa da pinga! Bradava minha mãe pela casa. Junto à primeira pingávamos nós, em irmandade com as que serpenteiam pelos pampas. Em uma das sextas-feiras de horror, foi a última gota, minha mãe e aquele homem gritavam:— Eu preciso de dinheiro pras crianças! — vociferava ela.
— Eu não vou mais botar UM ÚNICO REAL para dentrodesta casa! — respondia o covarde levantando a mão.
Como era irritante ouvir todos os Ss e Rs na boca daquele patife. Era um crápula com estudo, ex-aluno de um internato alemão. Suas palavras gozavam da nossa cara pelo seu poder de nos dominar e pela nossa falta de instrução à época. E pingou. Levei os pequenos para o quarto. Eles choravam. Compulsivamente. Ouviu- se um som de trovão. O último estouro em meio ao caos. Um arquejo de rasgar o vento. E tudo cessou.Um silêncio ensurdecedor varreu a casa e seguido dele minha mãe rompeu em lágrimas e pranto. Eu estava com um mocho na mão. Minha mãe não me questionou ou revoltou, apenas tirou-o de minhas mãos e o colocou numa bombona de lixo. Eu me tranquilizei. Amara, batizada por minha avó com a palavra sagrada, me deu que por meio de nossos ancestrais uma nova chance, a misericórdia carregava no nome. O silêncio de minha mãe significava um mundo inteiro. A prova de que eu participava de um grupo maior, um pacto entre as nossas. O silêncio de minha mãe foi o meu silêncio: eu não tinha visto, feito, ouvido ou lembrava de nada do que aconteceu naquela noite. Parte da memória também é esquecer. A ambulância chegou rapidamente, chamada pelos vizinhos, e levou o homem sem fazer perguntas. O velamos até o hospital, sempre ao seu lado. O médico falou que ele teve um derrame. Sem verbalizar, ruminei que foi a pinga que o corroeu. De dentro para fora. Derramou.
A escritora Tainã Rosa mora em Alvorada, RS, é professora, contadora de histórias, artista visual e produtora cultural. Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica. Graduada em Pedagogia e Mestra em Letras, Estudos Literários, pela UFRGS. Teve um período de estudos na Universidade do Porto, Portugal. Pesquisadora de literaturas pós-coloniais, artes pós-coloniais, relações etnico-raciais e educação interdisciplinar. Doutoranda, em Letras e Culturas Ibéricas e Latino-americanas, na Universidade do Texas, Austin, EUA. (tainaproducaocultural@gmail.com). _________________________