Passa das dez da manhã e, naquele horário, o fluxo de automóveis é
constante, barulhento. Olho para o prédio residencial à minha frente, um
daqueles imóveis antigos, com bem mais de meio século, construído em uma época
em que o trânsito não era um problema, em que carros eram artigos de luxo. As
sacadas, em sua maioria, têm vasos de plantas, flores e outros adereços. Meus
olhos fitam uma sacada em especial, vazia, sem nada que a destaque das demais.
Confiro o molho de chaves, escolho a maior, aquela que abre o portão de
entrada. O barulho do trânsito segue intenso enquanto entro no prédio em
silêncio.
Não há ninguém na portaria, tampouco encontro algum morador no caminho até
o elevador. Pressiono o botão de número doze, pouco depois estou em frente à
porta do apartamento. Nova conferência nas chaves, escolho a vermelha. Ouço um
clique suave ao abrir a porta, mas não entro de imediato. Sinto o cheiro fraco
de perfume, quase tudo lá dentro está coberto pelas sombras, alguns — poucos — locais
recebem fachos de luz da rua, pelas frestas das cortinas. Avanço, não sem antes
pedir em voz baixa, com licença.
É um
apartamento bonito, simples e prático, o hall de entrada tem uma mesinha com
uma pequena bandeja, que é onde deixo as chaves, dando-me conta de que aquilo
já deve ter ocorrido inúmeras vezes. Na parede do hall há um espelho redondo,
com entalhes em madeira muito bem trabalhados. Ao lado da mesinha, um par de
pantufas brancas pequenas descansam sobre um tapete. Deixo meus sapatos ao lado
das pantufas, entro na sala com os pés descalços.
Estar
aqui, nesse lugar, é como entrar em um reino íntimo ao qual não fui convidado,
sei que sou um intruso aqui. Na sala pequena, um sofá de armação de madeira,
almofadas com estampas florais estão amarradas por fitas em seus lastros. Outro
tapete jaz em frente ao móvel. Depois, uma televisão em um rack, o controle
remoto jogado sobre o sofá. Abro as cortinas, o sol da manhã invade o lugar,
talvez a luz seja mais bem-vinda do que eu. Quero ir embora, mas preciso ficar.
Retiro a mochila que trago em minhas costas, pego um notebook, faço anotações,
olho novamente para o cômodo, vejo um porta-retratos ao lado da tevê. É uma
imagem em branco e preto e atrás do porta-retrato, escrito à caneta, uma data,
um local. Búzios, 2018. Não faz tanto tempo, os sorrisos aqui, nessa foto,
duram para sempre.
Fico
parado na sala por um tempo, tentando ver o que acontecia aqui, é tudo tão
tranquilo, tão calmo. Não há vida aqui, eu lembro, só a memória. Levanto-me,
vou à cozinha, dentro da pia de alumínio há uma xícara não lavada junto de uma
colher. Depois eu lavo, é o que aquilo me diz. Na geladeira, poucas coisas,
verduras escurecidas pelo tempo, potes com alimentos congelados, a comida da
semana. Mais à vista, uma fatia de torta de banoffe pela metade. A cozinha e a
área de serviços são contíguas, vejo a máquina de lavar junto de um cesto cheio
de roupas. Haveria tempo, imagino. Quando voltar, eu lavo. Vou esperar ter mais
roupas, lavar tudo de uma vez apenas. Ou, talvez, não quero fazer isso hoje.
Talvez seja essa a resposta.
Ainda
há mais a ser visto.
O
banheiro é pequeno, tem um box de vidro esverdeado. Dentro do box, vários
xampus e condicionadores, um sabonete. No regulador de água, uma calcinha
repousa. Quase peço desculpas. Me volto para a pia ao lado do vaso, acima dela,
um armário com espelho que inspeciono sem mais olhar para o box. Tantos
remédios. Ansiolíticos, antidepressivos, remédios para dores de vários tipos. É
tudo tão simples, tão desconfortável.
Penso
em encerrar a visita, sair dali, daquele apartamento, daquele prédio. Daquele
mundo inteiro em poucos metros quadrados. Mesmo pensando em tudo isso, vou até
o quarto, com um roupeiro pequeno, uma cama box com lençóis desarrumados, todos
florais, o lençol inferior, com elástico, também solto sobre a cama. Tudo mais
fora do quarto, tão organizado. Sobre a cômoda, ao lado da cama, um rádio
relógio quebrado. Na parede acima do box, há um quadro com uma fotografia
ampliada. O vidro que a recobria está rachado, alguns cacos de vidro estão caídos sobre os lençóis. Vejo o
casal que havia na foto, com rasgos aparentes, destruindo um momento bonito
preso no passado. Agora, nesse instante, não há um “momento” só rastros de um
tempo recente, muito diferente daquela imagem.
Quando
aconteceu, naquele dia, eram seis da manhã, o barulho do trânsito não era tão
intenso, não havia tantas pessoas na rua. A sacada, o último lugar para onde
vou, é estéril, destoante de todas as outras sacadas, tão verdejantes naquele
ambiente urbano e sujo de fuligem. Há duas cadeiras, uma bem rente à parede e
outra, como um degrau, muito perto do parapeito. Não há mais detalhes, apenas a
cadeira, o que sua posição sugere. Não sei o que houve naquela noite, sei que
ela se revolveu na cama. Por muitas horas antes de amanhecer. Sei que se
decidiu de súbito.
Não
fico muito mais tempo. Apago as luzes, fecho a porta.
De
volta à portaria, uma senhora me cumprimenta, pergunta quem sou, nunca me viu
no prédio. Mostro meu documento enquanto explico de forma sucinta, me
preparando para deixar o local. A mulher comenta.
— Tão nova, não é?
— A
senhora à conhecia?
— Não, ela era esquisita, nunca quis assunto com ela.
— Talvez tenha sido isso então. — Comento sem pensar.
— Perdão?
— Não foi nada.
Ouço o barulho do trânsito, observo uma última vez aquele
prédio e suas sacadas. Em meio ao caos urbano, aquele foi só mais um dia comum,
ordinário. Aquele recorte passou despercebido. Na memória dos que a viram,
restou apenas o impacto ao atingir o solo.
Ben Schaeffer é escritor,
advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido
leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de
mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plagg: o Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).
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Conto postado, em 22 de julho de 2024, pelo autor, em sua página no facebook.
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