Mostrando postagens classificadas por data para a consulta Ben Schaeffer. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por data para a consulta Ben Schaeffer. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

 
VIDA 
Parte V - Inverno 

Veste um casaco com capuz que recobre parte de seu rosto. Veio sozinha, não queria a companhia de ninguém. Já era difícil estar ali e tinha certeza que se estivesse acompanhada não conseguir dar nem um passo naquela escadaria.
 Você jura que vai ficar bem?  Sua mãe perguntou quando ainda estavam no carro.
 Vou. Por favor, me deixa fazer isso.
 Filha...
 Eu preciso.
 Vou estar por perto.
 Tá.  Desceu do carro rápido, sem olhar para a mãe.
Está tão frio, tão diferente de quando eu era mais nova. Mas fui feliz aqui, pelo menos por um tempo. Ele disse que ia me esquecer, queria que soubesse que não. Mas o tempo... tudo vai mudando, eu mudei, não pude vir antes.
Estava no topo, viu ao longe a capelinha, caminhou sem pressa, sentindo o frio a lhe enregelar o rosto. Não havia ninguém por ali, mesmo com aquele clima, o céu estava azul. Fez uma prece na capelinha, pegou a urna e foi até a beirada do morro, no paredão que o mar corroía lentamente.
Era uma peça de metal tão pequena. As lágrimas caíram quentes em suas bochechas. Ele era tão pequeno, tão frágil. Porque tinha que... Segurou o pranto. Depois faria isso, agora tinha que terminar. Precisava. Era tão pequeno, aqueles dedos perfeitos, tão delicados. Abriu a urna e devagar as cinzas se dispersaram. Tinha olhos esverdeados, e todos os dias que teve com ele foram uma benção. Queria ser fria agora, queria que pudesse esquecer disso, de como era seu riso, seus olhos, sua boca pequena. Queria tanto. Se ajoelhou, incapaz de se afastar. Uma mão tocou em seu ombro.
 Filha, vem, eu te ajudo.
— Ele era tão pequeno... — Se abraça à mãe e chora.
— Ele era...
As duas permanecem abraçadas, perdidas em seu luto. A tarde avança lentamente. Depois voltam para o pátio sem dizer nada. Só voltam a conversar em casa, horas depois.
 Está melhor?
— Não.
 Tudo bem. Filha, porque quis ir até lá?
Não responde. O que dizer? Nem ela sabia explicar.
 Não sei.
— Tá... descansa então.
Ficou em silêncio sentada no sofá da sala da casa da mãe. Tinha dado o nome dele ao filho. Outra lembrança subindo acima das demais. E tinha sido tão curto o tempo que estiveram juntos, tão pouco quanto o que teve com o bebê, tão pouco... Não notou o quanto estava cansada até adormecer. Em seu sonho as memórias se misturam dando calor a um inverno doloroso.

 CONTINUA...

Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  

_________________________
Conto, do autor, VIDA.
Clique aqui e leia as outras partes do conto.
 Clique na imagem do autor nas palavras coloridas (Biografia).
Deixe seu nome
 e comentário 
abaixo:

domingo, 17 de agosto de 2025

 

VIDA 
Parte IV - Outono

Nas pedras perto da gruta segura firme a rede de pesca. O pai o chamou várias vezes, mas não deu atenção. Queria observar um pouco mais aquele ponto em que o mar atingia as pedras. Já era tempo de se afastar, mas fica ali hipnotizado pela força das ondas e por seu rugido. Puxa a rede com esforço, quase como se ouvisse algum canto que o quisesse ali enquanto a maré sobe. Depois volta até onde o pai está. Ele o crítica, reclama do perigo, e se fosse o dia que Iemanjá o quisesse com ela?
Daí poderia estar num deserto e morreria afogado.
Cala essa boca, guri.
Não sou guri há tempos.
Pra mim é. E pra sempre.
Tá, tudo bem.
Subiram uma longa escadaria na pedra, depois no topo do morro seu pai apontou para a capela.
Vamos por ali.
Caminharam pela trilha de grama amarelada, o céu de nuvens escuras no meio da tarde. Enquanto caminham vê a capela solitária. A estação já passou, pensa. Já faz tempo isso. Deve ter seguido por outra rota, bem diferente da que queria na época.
O que você tá fazendo aí?
O pai o olha impaciente. Se esquece da capela e o acompanha pela trilha, não olha para trás. Se fosse considerar, já estava atrasado naquela promessa fazia muito tempo. Estão no pátio do parque da Guarita, poucos pingos de chuva caem. Chegam ao carro e colocam o material de pesca no porta malas, troca a camisa.
Chega de pesca pra esse ano. — O pai sentencia entrando no carro no banco do carona.
É, chega.
Você esteve aqui sozinho faz uns dias. Pegou alguma coisa?
Lembra daquela noite, o outono não tinha chegado. Era o que? A oitava vez que fazia a mesma coisa? Tinha uma vida, trabalho, namorada. E mesmo assim, estivera ali de novo, à noite, prometera fazia tanto tempo, só não conseguia deixar pra lá. Então ficou por ali, olhou para as estrelas, sentiu o vento frio da noite. Sozinho.
Não peguei nada. Nem uma gripe.
Pelo menos isso.
— Vamos?
 É você quem dirige, filho.
Manobrou o carro, pegou a estrada para a saída do parque. Ainda morava na cidade, era uma vida boa, não tinha do que reclamar. Mas de vez em quando, pensava que não devia ter mentido para ela que não se importava. Achou que seria o melhor. A chuva aumentou, passou em frente a uma casa em que parara muito tempo antes. Tinha sido alugada na época.
 Guri, porque está assim? Parece que se perdeu no tempo.
— Ah, desculpa. Não é nada.
 Não mente.
— É sério. Tá tudo bem.
 E o que tanto você ficava olhando pra essa casa então?
 Nada. São só umas memórias que não consegui substituir.

 CONTINUA...

Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  

_________________________
Conto, do autor, VIDA.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).
Clique aqui e leia as outras partes do conto.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

 

VIDA 
Parte III Verão

Ah. Pode ser.
 Para. Você quer ou não?
 Eu quero. Calma.
 Então daqui um ano a gente se encontra.
— Tudo bem.
 Promete?
 Precisa tudo isso? Que exagero.
 Como você é chato.
 Só porque você vai embora amanhã e vai esquecer isso daqui uma semana, prometo.
Demoraram a chegar à casa em que estava hospedada com os pais. Queria estar com ele, beijá-lo mais algumas vezes, sentia aquele calor que nem o vento frio diminuía. Se o rapaz gostava dela da mesma forma, nunca transparecia. Ficaram à porta, a madrugada dando lugar ao nascer do sol. Seu pai ficaria furioso, mas não importava. O verão estava acabando. Era só isso. Uma memória que desapareceria dando lugar a novas lembranças.

  CONTINUA...

Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  

_________________________
Conto, do autor, VIDA.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).
Clique aqui e leia as outras partes do conto.

 

VIDA 
Parte II Verão 

Acho que sim.   Não há sinal de tristeza naquele rosto.
Tá bem então. É isso.
Porque a gente não aproveita o hoje? É o que você tem.
Vou descer.
Espera. Não faz assim.
Tá tudo bem, é isso. Está tarde.
Enquanto caminha pelo gramado do morro vê ao longe uma pequena capela. Ouve o som dos passos dele, que a alcança e entrelaça seus dedos nos dela.
Se você ficar brava, fica mais fácil de ir embora amanhã.
Você é um idiota.
Ele ri e aponta para a capela.
Existe há muito tempo, sabia?
É? Quanto tempo?
Mais do que a soma das nossas idades.
Uau.
Vai rindo. Uma hora vamos ter o dobro da nossa idade e vamos ser velhos.
O que acha de nos encontrarmos em frente a capela?
Quando? Amanhã?
Eu vou embora amanhã. Tô dizendo daqui algum tempo. Sei lá.

 CONTINUA...

Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  

_________________________
Conto, do autor, VIDA.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).
Clique aqui e leia as outras partes do conto.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

 

VIDA 
Parte I - Verão

O vento frio a faz se arrepiar. Logo depois coloca o capuz do moletom que está vestindo e sentada no gramado em frente ao mar abraça seus joelhos. Chama pelo garoto, que a ignora, indo para a beirada onde o mar atinge com força o paredão muitos metros abaixo.
 Sai daí! Vem logo.
 Calma. Já vou.
Ao longe é possível ver luzes de embarcações no oceano, pequenas estrelas quase tocando o mar. A menina vai até onde ele continua observando o abismo.
 Vem. Por favor.   Ela o puxa pela gola da camisa.   O que você quer aí?
 Tem uma história sobre uma noiva que perambula nas pedras da gruta lá embaixo.
Queria ver se ela podia estar andando por lá hoje.
 Não quero saber dessas coisas. Vem.
 Tá, tá. Qual é o seu problema?
Andam em silêncio de volta até o ponto em que a garota julga seguro. Ainda está com frio e abraça o rapaz, que abaixa seu capuz e acaricia seus cabelos curtos.
 Vou embora amanhã.
 Você já disse isso.
 E você não se importou.
O vento aumenta e se torna um lamento. O fim do verão e o fim das férias.
 Você vai voltar daqui algum tempo.
 E se eu não voltar?
 Daí vai lembrar desse verão por um tempo. Depois vai esquecer. E outras lembranças vão tomando o lugar desses dias.
Ela se afasta e encara o rapaz de pele morena e cabelos escuros curtos.
 Só isso?

 CONTINUA...

Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  

_________________________
Conto, do autor, VIDA.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).
Clique aqui e leia as outras partes do conto.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

 

TESOURA (Parte Final)

— Bom dia. — Disse.
— Vim devolver a tesoura.
— Ah, tudo bem. Não tinha pressa.
— O pai já usou, não queria abusar.
— Tá certo.
A moça devolveu a tesoura e ficou ali parada no pátio. Depois falou.
— Eu estou de férias, aqui é tão parado.
— Sim, é parado.
 O seu gato é muito bonito.
 É meu companheiro, sabe? Veio pra cá e nunca mais foi embora.
 O senhor sempre morou aqui?
 Sempre.
— E conhece muita história daqui?
Ele pensou um pouco. Conhecia um pouco de tudo, desde fofocas antigas que sua mulher lhe contava, a segredos de amigos há muito mortos e muitas lendas dali e de algumas outras regiões. Contou exatamente isso a menina.
— Que legal! O senhor me conta?
 Conto o que?
 Uma história!
 Mas... você não prefere fazer outra coisa por aí?
 Eu posso..., mas aqui é tão parado. Então... acho que uma ou outra história vai ser algo bom pra passar o tempo.
Ele olhou para a menina, não estava fazendo troça. Levantou com dificuldade, foi até a cozinha, pegou uma outra cadeira e a colocou na varanda um pouco distante da dele. Ofereceu a cadeira à moça. Ela sentou-se.
 Bebe chimarrão?
 Bebo. — Respondeu sorrindo.
 Já ouviu a respeito da dama na caverna? — Perguntou um pouco sem jeito, entregando a cuia à menina.
 É da Salamanca do Jarau?
 Não, essa é outra. Essa que falei é lá de Santa Cruz... um amigo me contou. Falava como se fosse verdade.
 E o que o senhor acha?
 Que é uma história boa, seja verdade ou não.
— Então me conta.
Era início da tarde, dessa vez tinha almoçado, o gato veio, sabe-se lá de onde, como sempre, e pulou no colo da visita. Não estava mais chovendo, o céu ainda estava nublado, mas o sol ensaiava alguns raios de luz aqui e ali. Ele contou a história, ela agradeceu quando terminou e pediu outra. No outro dia, o pai dela veio, e junto deles, o irmão mais novo. Contou outra história, um bêbado da cidade que um dia recuperou o juízo e jurava que tinha domado a mula sem cabeça. Depois, de vez em quando, vinham todos, ele aprendeu seus nomes, eles o dele, o tratavam bem, às vezes almoçavam ou lhe buscavam pra almoçar. Contou muitas histórias, e a menina trouxe um caderno, anotava, anotava. O gato sentava em mais colos, à noite o velho ia dormir pensando que seria bom poder dar mais um bom dia. Nunca abriu a bíblia que tinha na cabeceira da cama, mas achava que se alguma coisa tinha mudado, talvez tivesse a ver com ela. Talvez. Mas, normalmente, pensava que tudo tinha a ver com uma tesoura, e durante o tempo que lhe restou — e foram muitos os “bom dia” que pôde dar - nunca perguntou porque precisaram dela em um dia de chuva.  

 

Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  
_________________________
Conto, do autor, TESOURA.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).

quinta-feira, 24 de abril de 2025

 

TESOURA (Parte II)

 Desculpa ter vindo atrás do senhor. — A menina disse, incerta. Observou o vestido.  Como é bonito! Da sua esposa?
—  Sim... minha filha usou também, bem depois.
 Ah. Posso devolver amanhã? A tesoura.
— Pode.
—  Tá bom.  A moça colocou o casaco sobre a cabeça, correu para fora do galpão e foi embora.
Ficou olhando por um tempo a menina dando pulinhos, escapando de poças d’água, desaparecendo do outro lado da estrada. Voltou a entrada de casa. O chimarrão estava frio, tomou o mate mesmo assim, voltou a cozinha, aqueceu a água, sentou-se. O gato subiu em seu colo. A chuva aumentou, a sensação de abafamento diminuiu um pouco. Um carro passou pela estrada, deu algumas buzinadas, como se o cumprimentasse e logo depois sumiu. Ouviu um barulho alto, parecido com tum. Continuou sentado, acariciando o gato. Outro carro veio de uma das casas, um ou outro morador passou correndo pela estrada. Não se moveu. Já imaginava o que tinha acontecido, torcia apenas que o motorista e quem estivesse junto não tivesse se machucado muito. Dormiu, o som indistinto de pessoas falando se misturou.
Estava tarde, não tinha mais o gato no colo, estava sozinho. Tinha esfriado, levantou-se da cadeira com dificuldade. Só quando acordou se perguntou porque precisavam de uma tesoura de poda com aquele mal tempo reinante. Depois foi ao banheiro, precisava tomar algo pra dor. Antes, muitos anos antes, teria ouvido reprimendas por se deixar demorar tanto para tomar algum remédio. Ele esquecia, tolerava a dor, era isso. Não, você tem que se cuidar, como vai deixar ficar desse jeito, parece que manca. Vai me deixar cedo assim. Com pesar, lembrou que ela se foi muito tempo antes dele. Vivia indo ao médico, tinha uma saúde de ferro, dizia, mas então certa noite disse boa noite e não mais disse bom dia. Não pensava nisso com desdém, era o contrário. Achava injusto estar ali sozinho.
A filha... a custo tirou a lembrança que era como uma única rosa no centro de um espinheiro. Doía muito lembrar dela. Tão bonita, tão feliz. Não quero lembrar, não vou. O quadril doeu quando andou pela casa, ficou feliz por isso, já que tinha no que se focar. Tomou o remédio, o gato, retornado sabe-se lá de onde, deu voltas ao redor de suas pernas. Com esforço se abaixou, acariciou o pelo macio, agradeceu a Deus pela companhia. Foi ao quarto, tinha uma bíblia no criado mudo. Olhou um pouco para o livro, tão sagrado para alguns, nem tanto para ele. Deixou onde estava. Tinha uma grossa camada de poeira. Todo dia olhava para o livro, todo dia o deixava onde estava.
Estava frio em pleno verão, o sol estava escondido pelas nuvens, encabulado demais para se apresentar em um dia chuvoso, ninguém vai casar hoje, nem viúvas, nem espanhóis. Não riu da piada boba, apenas voltou a cadeira, depois de esquentar mais uma chaleira de água e fazer um novo chimarrão. O remédio tinha ajudado, a dor era mais suave, mas agora lembrava que não tinha almoçado, já era tarde, quase perto da seis, ainda que durante todo o dia tivesse parecido assim, sombrio, como se a noite ameaçasse chegar muito mais cedo. Era seu relógio interno que dizia sem precisar olhar as horas, que lhe acordava antes das cinco, que lhe dizia quando anoitecia. A pergunta que vinha se fazendo era para que? Não trabalhava mais, não tinha mais esposa, nem filha, nem neto, nem genro, todos se foram. Ficou apenas ela, sem mais almoços em família, sem ninguém com quem conversar, talvez a exceção de quem precisasse de uma tesoura de poda em um dia de chuva, mas senão... mais ninguém. Não lembrava da última vez que tinha feito um churrasco, os amigos de infância moravam todos no mesmo endereço agora. Sobrara ele, sozinho, sentado na frente de casa com a camisa social branca de tecido puído, as calças de linho curtas demais e suas alpargatas gastas.
Tomou o chimarrão sozinho, ensimesmado, levou um susto quando o gato pulou em seu colo. Tinha passado muito tempo e ele devia ter cochilado. Continuava chovendo, continuava esfriando e ele continuava sozinho. O gato o contrariou, lambeu seus dedos e depois se aninhou em seu colo. Não tão sozinho. Não vou levantar agora, gato, só pra você dormir um pouco. É bom você continuar por aqui. Prometo que te dou algum lanche gostoso amanhã.
Mais tarde, quando o gato saiu para o pátio e ele se perguntou o que ele iria querer fazer na rua com aquele tempo, foi para a cama, trocou a roupa, pôs um pijama que sua falecida lhe havia feito. Era tão velho e puído quanto as outras roupas, mas ela tinha feito e ele não conseguia se desfazer. Sentou na beira da cama, já era noite, já estava tarde, já estava cansado, já se perguntava se seria essa a noite, aquela em que não daria mais nenhum bom dia.
Não foi.
O dia seguinte, o mesmo ritual, as mesmas dores, o mesmo levantar devagar, a mesma cadeira. Ficou na frente de casa, com os olhos fechados, sentado na cadeira confortável.
—  Oi!
Levou um susto. Era a mesma menina do dia anterior. Não chovia e ela estava com a tesoura.

 (Continua...)


Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  
_________________________
Conto, do autor, TESOURA.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).

sábado, 5 de abril de 2025

 

TESOURA (Parte I)

Não precisava de despertador para acordar. Ainda não amanheceu e ele abre os olhos, como se saísse de um sono sem sonhos. As dores no quadril acordam com ele, que fricciona a lateral do corpo mais dolorida e, lentamente, inicia o processo de levantar da cama de colchão velho e com a espuma enfraquecida. Já faz uns anos que, ao levantar, olhava para o lado da cama vazio. É só por um instante que se permite. Lá fora, ouve a chuva caindo suavemente sobre a plantação de milho. Levanta, pega algumas roupas, vai até o chuveiro, seu corpo magro e ossudo dói em alguns lugares além do quadril. Toma banho, escova os dentes de que tem orgulho. Tem quase todos e já está com quase oitenta anos. Depois, já seco, penteia os cabelos brancos e ralos, faz a barba com cuidado, deixando apenas o bigode amarelado pela nicotina. Veste calças de linho curtas, uma camisa branca cujo tecido gasto é quase transparente. Chove, mas está abafado. É verão, ainda que seja um verão com um clima que parece o outono, a temperatura ainda é alta. Por fim, calça as alpargatas velhas. Só então vai à cozinha onde prepara café preto que bebe acompanhado de pedaços de pão de milho e erva doce.
Vai para a frente da casa, onde sua cadeira está ocupada pelo gato. Ele nunca deu nome ao gato cinzento, às vezes acha que o animal sempre esteve por ali, mas é porque sua memória já não é mais tão boa. Ele ergue o animal até a altura de seus olhos, que o encara preguiçosamente, sem se opor. Depois o coloca no chão com delicadeza. O bichano se deita ao lado da cadeira, onde colocou um tapete. Senta-se na cadeira, observa a chuva caindo no pátio que precisa ser mais bem cuidado. Ao lado, à esquerda, sua plantação de milho. Teve que pedir que o ajudassem. Não tinha forças, a dor no quadril, a coluna reclamando. Era isso ou nada. Optou pelo pedido, pagou o serviço, teria que pagar para que colhessem. Voltou à cozinha, aqueceu a água em uma chaleira velha, fez um chimarrão, voltou à cadeira. Antes disso, pegou um petisco e deu ao gato. Ficou parado na porta enquanto via o bichinho comendo com voracidade. Será que é velho como eu esse gato? Tinha ouvido alguém dizer que esses animais podiam viver anos e anos. Talvez seja então, porque não me lembro de quando ele veio pra cá... Deve ser.
Sentou-se, encheu a cuia com água quente, as bolhas subindo enquanto fazia isso, a erva de desmanchando do monte, mas apenas o necessário, sugou o sabor amargo do mate, o som da chuva continuou. Plic, plic, plic caindo pela calha em um balde com uma arvorezinha. Sozinho ali, observando a chuva, a estrada, o campo a sua frente. De tempos em tempos um carro passava na estrada de terra cheia de buracos. Era uma linha reta ali, mas os buracos faziam os motoristas fazerem curvas, tentando evita-los, sem muito sucesso. Ficou ali, sentado, as canelas brancas e magras a vista, a calça era a curta, não tinha outra. Não se importava muito com isso. Àquela altura da vida não se importava com muita coisa. Talvez com a dor no quadril, mas melhorava, só precisava se mexer. Encheu outra cuia, ficou segurando-a sem beber.
Atravessando a estrada com um casaco sobre a cabeça, vinha uma vizinha. Passou por todas as poças com pequenos pulos, passou pelo portão que era preso por um pedado de corda e depois veio até a entrada da casa. Era jovem, já a vira algumas vezes nos últimos dias, mas nunca tinha falado com ela.
 Oi!
 Oi.  A voz rouca de quem pouco a usa.
 O pai pediu pra perguntar pro senhor se tem uma tesoura de poda.
Levantou-se sem dizer nada. Foi aos fundos da casa, deixando a menina na entrada. Ficou ali por um tempo, procurando, procurando. Encontrou em uma das caixas mais ao fundo, junto com algumas roupas que ele não conseguiu doar ou jogar fora. Tinha um vestido branco, cheio de grinaldas. Olhou, ficou ali parado, tesoura na mão.
 Moço?
Parecia tão longe, já não ouvia bem, mas a voz se aproximou e ele voltou ao presente. Olhou cansado para trás, a menina tinha vindo atrás dele. Devia ter uns quinze anos, tinha os olhos muito escuros que faziam um contraste interessante com os cabelos louros que guarneciam sem rosto redondo.
 Achei a tesoura.  Disse entregando o objeto.

 (Continua...)


Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  
_________________________
Conto, do autor, TESOURA.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).