sábado, 5 de abril de 2025

 

TESOURA (Parte I)

Não precisava de despertador para acordar. Ainda não amanheceu e ele abre os olhos, como se saísse de um sono sem sonhos. As dores no quadril acordam com ele, que fricciona a lateral do corpo mais dolorida e, lentamente, inicia o processo de levantar da cama de colchão velho e com a espuma enfraquecida. Já faz uns anos que, ao levantar, olhava para o lado da cama vazio. É só por um instante que se permite. Lá fora, ouve a chuva caindo suavemente sobre a plantação de milho. Levanta, pega algumas roupas, vai até o chuveiro, seu corpo magro e ossudo dói em alguns lugares além do quadril. Toma banho, escova os dentes de que tem orgulho. Tem quase todos e já está com quase oitenta anos. Depois, já seco, penteia os cabelos brancos e ralos, faz a barba com cuidado, deixando apenas o bigode amarelado pela nicotina. Veste calças de linho curtas, uma camisa branca cujo tecido gasto é quase transparente. Chove, mas está abafado. É verão, ainda que seja um verão com um clima que parece o outono, a temperatura ainda é alta. Por fim, calça as alpargatas velhas. Só então vai à cozinha onde prepara café preto que bebe acompanhado de pedaços de pão de milho e erva doce.
Vai para a frente da casa, onde sua cadeira está ocupada pelo gato. Ele nunca deu nome ao gato cinzento, às vezes acha que o animal sempre esteve por ali, mas é porque sua memória já não é mais tão boa. Ele ergue o animal até a altura de seus olhos, que o encara preguiçosamente, sem se opor. Depois o coloca no chão com delicadeza. O bichano se deita ao lado da cadeira, onde colocou um tapete. Senta-se na cadeira, observa a chuva caindo no pátio que precisa ser mais bem cuidado. Ao lado, à esquerda, sua plantação de milho. Teve que pedir que o ajudassem. Não tinha forças, a dor no quadril, a coluna reclamando. Era isso ou nada. Optou pelo pedido, pagou o serviço, teria que pagar para que colhessem. Voltou à cozinha, aqueceu a água em uma chaleira velha, fez um chimarrão, voltou à cadeira. Antes disso, pegou um petisco e deu ao gato. Ficou parado na porta enquanto via o bichinho comendo com voracidade. Será que é velho como eu esse gato? Tinha ouvido alguém dizer que esses animais podiam viver anos e anos. Talvez seja então, porque não me lembro de quando ele veio pra cá... Deve ser.
Sentou-se, encheu a cuia com água quente, as bolhas subindo enquanto fazia isso, a erva de desmanchando do monte, mas apenas o necessário, sugou o sabor amargo do mate, o som da chuva continuou. Plic, plic, plic caindo pela calha em um balde com uma arvorezinha. Sozinho ali, observando a chuva, a estrada, o campo a sua frente. De tempos em tempos um carro passava na estrada de terra cheia de buracos. Era uma linha reta ali, mas os buracos faziam os motoristas fazerem curvas, tentando evita-los, sem muito sucesso. Ficou ali, sentado, as canelas brancas e magras a vista, a calça era a curta, não tinha outra. Não se importava muito com isso. Àquela altura da vida não se importava com muita coisa. Talvez com a dor no quadril, mas melhorava, só precisava se mexer. Encheu outra cuia, ficou segurando-a sem beber.
Atravessando a estrada com um casaco sobre a cabeça, vinha uma vizinha. Passou por todas as poças com pequenos pulos, passou pelo portão que era preso por um pedado de corda e depois veio até a entrada da casa. Era jovem, já a vira algumas vezes nos últimos dias, mas nunca tinha falado com ela.
 Oi!
 Oi.  A voz rouca de quem pouco a usa.
 O pai pediu pra perguntar pro senhor se tem uma tesoura de poda.
Levantou-se sem dizer nada. Foi aos fundos da casa, deixando a menina na entrada. Ficou ali por um tempo, procurando, procurando. Encontrou em uma das caixas mais ao fundo, junto com algumas roupas que ele não conseguiu doar ou jogar fora. Tinha um vestido branco, cheio de grinaldas. Olhou, ficou ali parado, tesoura na mão.
 Moço?
Parecia tão longe, já não ouvia bem, mas a voz se aproximou e ele voltou ao presente. Olhou cansado para trás, a menina tinha vindo atrás dele. Devia ter uns quinze anos, tinha os olhos muito escuros que faziam um contraste interessante com os cabelos louros que guarneciam sem rosto redondo.
 Achei a tesoura.  Disse entregando o objeto.

 (Continua...)


Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  
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Conto, do autor, TESOURA.
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A PRISÃO DA MENTE (Capítulo I - Parte I)

A noite de outono estava perfeita. O brilho suave das luzes que refletiam seu brilho nos lustres de cristal da galeria de arte refletia na superfície das paredes brancas, formando um cenário de conto de fadas. A música suave preenchia o ar dando uma sensação de sofisticação e tranquilidade.
Clara, estava tensa. Encostada na parede, observava as pessoas que circulavam ao seu redor, estava em seu mundo, absorvendo o ambiente efervescente, cercada por cor e inspiração, por trás do seu olhar atento e pelo sorriso nervoso que tentava disfarçar, havia uma crescente inquietação.  Seria sua primeira entrevista oficial para o jornal local. Preocupada com o que falaria na entrevista, relembrou mais uma vez o roteiro ensaiado por incontáveis horas diante do espelho.
Respirou fundo, fechou os olhos e sentiu que estava preparada para a entrevista... Foi então que ele entrou
Victor surgiu na entrada como uma presença magnética, prendendo instantemente a atenção de todos na sala. Usava um terno escuro, bem ajustado que acentuava sua figura esculpida, exalando confiança e charme.
Seu cabelo cuidadosamente desarrumado, moldava seu rosto atraente, enquanto uma expressão de autoafirmação iluminava sua aparência. A música pareceu silenciar apenas para ele, como se o universo estivesse esperando que ele fizesse algum truque de mágica espetacular.
Com um movimento gracioso, Victor caminhou com propósito, seus passos firmes e seguros, garantindo que todos os olhos estivessem voltados para ele. Onde Victor passava, as conversas silenciavam e sussurros de admiração e curiosidade se espalharam pela galeria.
O que aquele renomado repórter fazia naquele local? Na exposição de uma artista emergente, mas ainda não famosa. Era a pergunta que todos faziam aos sussurros.
Ele sabia que causava esse efeito e o usava com maestria principalmente quando tinha segundas intenções ou melhor uma nova conquista. Cada gesto, cada sorriso, era uma peça de um quebra-cabeça que montava para atrair sua vítima perfeita, escolhida a dedo muito antes da conquista.
Para que o seu teatro fosse notado por seu alvo, aproximou-se de um grupo de mulheres, seu sorriso se ampliou e seus olhos brilhavam com uma malícia sedutora. Ele começou a falar, sua voz suave e envolvente moldando as palavras com uma técnica que ele dominava, a sedução.
"Senhoras, vocês precisam conhecer as obras dessa pintora, ela transforma a dor em beleza" dizia gesticulando dramaticamente na direção da pintura onde Clara se encontrava.
Clara, à distância, sentiu uma mistura de curiosidade e apreensão. A forma como ele se movia era hipnótica: Havia um brilho em sua confiança que queria, ansiava pela aproximação com aquele desconhecido.
Victor, lançava olhares afiados, mas através deles, Clara notou algo mais: uma astúcia que parecia perigosa, isso no entanto, não impediu que ela se sentisse irresistivelmente atraída por seu jeito enigmático.
Ele encarou Clara, e em um instante, o mundo ao seu redor se dissolveu. O brilho astuto em seus olhos parecia convidá-la a se juntar à conversa, a deixar sua insegurança. Ela ficou ali parada, feito boba, então ele caminhou em sua direção com passos calculados e se apresentou:
Prazer. Meu nome é Victor. Sou o repórter que vai te entrevistar. Uma confusão de sentimentos se apossou de Clara, quando ele se aproximou invadiu o espaço ao seu redor, fazendo com que ela por um momento esquecesse suas incertezas e inseguranças.
O homem à sua frente era de estatura média a alta, ela o mediu, mentalmente e chegou a conclusão que devia ter uns 10 cm, a mais que ela. Tinha um corpo bem definido que demonstrava uma certa vaidade e cuidado com sua forma física. Sua presença era imponente, mesmo que não queira ser.
Postura ereta e confiante, que transmite segurança para ele mesmo. Ela notou que o cabelo de Victor eram escuros ou pretos, em contraste com sua pele. Estavam ligeiramente desarrumados, mas de maneira que parecia intencional e estilizado, adicionando um certo ar de despreocupação.

(Continua...)

A escritora Ironi Jaeger é coordenadora do Festival de Literatura e Artes Literárias (FLAL). Mora em Alvorada, RS.
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Trecho do romance A PRISÃO DA MENTE, postado em 07 de março de 2025, pela autora, em sua página no wattpad. 
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Clique aqui e leia o romance na íntegra.

 

O POETA ADORMECIDO

 

Dorme o poeta, sereno e calmo,  

Sobre as plumas do esquecimento,  

Enquanto o vento sopra em seu salmo  

Versos de um último pensamento.  


No leito de sombras, o sonho vem,  

Lúcido véu entre mundos velados,  

Vê-se além, além de quem,  

Caminha em ecos, passos calados.  


A morte lhe fala, doce, gentil,  

Como quem canta um canto antigo,  

Sem foice ou dor, sem ser hostil,  

Apenas um toque, um afago amigo.  


ele sorri, ao se ver partindo,  

Num barco de névoa, flutuando leve.  

Morre dormindo, mas segue indo,  

Vivo no sonho que nunca se atreve.  


Mas outros dizem: "Ele se foi!"  

Não sabem que agora é luz errante,  

Que em cada estrela, em cada "depois",  

Seu verso vive, eterno e vibrante. 

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Poema O POETA ADORMECIDO, do escritor Damião Oliveira
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A FLORESTA DOS MORTOS (Parte I)

Meu nome é Alan Scherer, mas isso não importa mais. Decidi escrever em um caderno de notas, como se fazia antigamente, os fatos  que me levaram até essa condição degradante em um hospital psiquiátrico, um nome melhor para o que chamávamos antes de hospício. Demorou pra eles me darem caneta e papel, escrever sempre foi um dos meus passa tempos preferidos, um dia cheguei a sonhar em escrever um livro, contudo faltava-me  criatividade e sentimento. Não basta saber as melhores palavras, é necessário inspiração para atingir as emoções mais latentes, e a minha preferida sempre foi o medo. É estranho para mim pensar que, então, este texto chegará perto disso através de experiências que eu jamais desejaria de ter vivido, e até hoje me pergunto se foram reais ou produto da minha mente fantasiosa e fraca. Estarei verdadeiramente louco? Os horrores do desconhecido, incompreensíveis para minha mente simplória, penso eu, só poderiam realmente terem me levado à loucura e à insanidade. Será com o que tenho ainda de lucidez, que escreverei essas próximas linhas que tratam de memórias e sonhos, sim, sonhos. Pois desde cedo eu desenvolvi um dom peculiar, era uma capacidade que na prática não servia para nada, mas para mim trouxe maravilhas que aqui não terei tempo para contar. Eu conseguia muitas vezes estar consciente durante os sonhos. 
Tudo começou com a morte do meu velho pai quando eu ainda era criança. Fiquei muito triste, como não poderia deixar de ser, mas minha querida mãe na época entrou em depressão profunda, apesar de não aceitar. Meu pai era um homem tranquilo e gentil, lembro dele com a sua marreta quebrando algumas pedras que atrapalhavam o seu belo jardim e plantação de alfaces nos fundos da nossa casa. Ele trabalhava na lavoura em terras arrendadas, era forte e eu o admirava, quando ficou doente nada restou do homem que um dia fez um jardim e quebrava pedras. Minha mãe, após o sepultamento, começou a apresentar comportamento errático e falho, taciturno e, por fim, totalmente apático. Sentava-se na sua cadeira na varanda, ao lado da cadeira vazia do meu pai, e ficava horas olhando para uma grande figueira ao lado da casa, e às vezes para a floresta que ficava mais além de um campo no final da nossa rua. Depois de algum tempo ela simplesmente começou a dizer que as coisas iriam melhorar. O local onde morávamos era uma vila agrícola que abastecia as cidades vizinhas, chama-se Vila do Sacramento, mas todos apenas chamavam simplesmente de vila, como se o lugar por não ser grande o suficiente não merecesse um nome. Havia poucas famílias, diziam que eram os descendentes dos moradores que vieram ocupar o lugar no início do século passado. Certamente os meus familiares de gerações passadas estiveram por ali, derrubando árvores, cortando mato e fazendo suas moradias. A nossa casa tinha pertencido ao meu avô, o pai da minha mãe, era de madeira gasta pelo tempo, e a pintura branca estava sempre descascando, ficava no final da rua onde estava a maldita figueira. 

(Continua...)


Graduado em História, o escritor Everton Santos, autor do livro O SOL DOS MALDITOS, é coordenador dos eventos Feira Alternativa e Ensaio de Rua, músico da banda de punk rock Atari e apresentador do canal, no youtube, Consciência Histórica. Mora em Alvorada, RS.
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Conto postado, em 25 de março de 2025, pelo autor, em seu blogue Contos do Horror Cósmico. 
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terça-feira, 25 de março de 2025

 

TOME NOTA (Parte II)
Eu perambulava por aí com 4 a 5 kg de papel para que nenhum pensamento escapasse da ponta da caneta. Durante as conversas eu pouco falava, pois falar significava não anotar e caso falasse tinha de escrever com o dobro da velocidade logo em seguida, pois deveria anotar o que eu havia dito e o que falavam enquanto eu anotava o que eu havia dito. Os que me rodeavam não entendiam a importância do meu gesto e aos poucos os convites para o passeio foram diminuindo, o que não me afetou muito pois agora podia relatar em meus diários o que eu pensava sobre a atitude deles. Me tornei recluso e sem companhia, mas não me julgava sozinho pois sempre tinha junto de mim todos os pensamentos que pensei e esses jamais seriam esquecidos ou apagados.
O hábito de anotar se tornara tão constante que desenvolvi um calo entre o dedo indicador e médio devido ao atrito da caneta, minha postura era totalmente corcunda por sempre estar debruçado sobre o papel e meus olhos passaram a ter uma aspecto turvo pelo constante esforço para focar nas letras e mesmo assim não precisava de óculos, pois só era embaçado o que se distanciava para mais de 50 cm, ou seja, os cadernos eu via perfeitamente.
Eu escrevia tanto agora que ocorreu um dia que não desgrudei da atividade de escrever um minuto sequer. Acordei e fui imediatamente anotar o sonho que tive, para em seguida anotar em outro caderno o fato de ter anotado o sonho e tive assim de anotar que anotei o sonho. Tentei fazer café mas não concluí a atividade, pois tinha de anotar a tentativa de fazer café e de novo anotei o que havia anotado. Ao fim do dia tinha anotado umas 40 páginas, porém, devido ao caráter das anotações, essas 40 páginas não deviam ter mais de 50 palavras que se repetiam.
Eu não tinha tempo para ler o que eu escrevia, pois ler significava não anotar, e anotar ficava cada vez mais difícil pois parecia que estava sempre correndo atrás do que acontecia. O momento e entre o acontecido e o anotado havia uma infinidade de tempo e de acontecimentos que mereciam ser memorandos para sempre. Enquanto mais escrevia mais coisas a serem escritas surgiam.
Eu possuía muitos cadernos para o registro correto das notas e justamente por conta disso eu deveria trocar entre um caderno e outro para que as informações fossem devidamente organizadas e ocorre que essa troca de material de escrita fazia com que eu perdesse uma infinidade de tempo que eu não poderia me dar o luxo de perder.
Tomei então a outra decisão derradeira da minha vida: Voltaria ao bazar que deu início a tudo, seria a visita que acabaria com todas as visitas. Compraria todas as folhas da loja, inclusive as do estoque, tudo isso para produzir um gigantesco e robusto caderno, com milhares e milhares de folhas para registrar todo e qualquer pensamento que me viesse na cabeça. Nenhuma ideia, sentimento ou palavra me escapariam agora já que não haveria perda de tempo na troca de um meio de escrita para outro.
Assim fiz.
Comprei cerca de 32 mil folhas dos mais diversos tipos de tamanho, cor, textura, material e tudo que pode variar entre um papel e outro. Essas 32 mil folhas me renderiam pelo menos 64 mil páginas, e digo pelo menos porque haveriam certamente folhas que eu deveria recortar, o que renderia o quádruplo páginas. Tive de confeccionar o caderno apenas com uma das mãos, pois com a outra eu deveria escrever detalhadamente o processo, isso fez com que a produção demorasse muitíssimo tempo, o que me rendeu muito material de escrita.
Agora nada mais escapava à tinta e ao papel. Anotava exatamente tudo que pensava e por muitas vezes o que eu não pensava. Anotava tudo que ocorrera no dia para no dia seguinte anotar tudo que anotei no dia anterior e no dia a seguir anotar tudo que anotei sobre as notas do dia em questão. Havia vezes que anotava a mesma palavra por semanas, pois após anotar certa palavra eu pensava nela e vice-versa.
 não saía da mesa onde escrevia, já não via mais nada além do enorme caderno e já não anotava mais nada sem ser o hábito de anotar.

Conto TOME NOTA, do escritor Gabriel Molina. Natural de Alvorada, RS, reside no município desde a infância. Estudante de Letras, na UFGRS, adora escrever ficção.

 

TOME NOTA (Parte I)
Houve certa vez, enquanto contava uma anedota, que fugiu de minha memória certo termo (que não lembro hoje também). Tal termo era empregado por mim pelo menos 3 vezes por semana, e justo agora, durante uma importante anedota em uma importante conversa (não lembro exatamente o assunto, lembro somente da importância da conversa) fui esquecer o raio do termo.
A conversa seguiu bem, entretanto minha fala não causou o impacto que deveria causar se tivesse lembrado da bendita palavra. Ao fim do dia fui para casa com tom de pesar na cabeça. E se eu esquecesse outras coisas que me eram tão comuns ao cotidiano? E se eu me esquecesse do nome do livro que deveria ler para a próxima aula? e se me esquecesse dos pensamentos que tive durante a leitura, que me impossibilitariam de assistir a aula ou responder bem às questões dadas pelo professor? e se eu me esquecesse a palavra que descreve aqueles pequenos patamares que se elevam um após o outro e que servem para nos levar de andar X para o andar Y? E se eu me esquecesse dos nomes dos meus amigos que vejo poucas vezes no ano, ou pior, me esquecesse dos nomes dos que vejo constantemente ou mesmo esquecesse do rosto de meus pais e irmãos?
E com esse pensamento em mente (que não durou duas frações de segundo e por isso mesmo poderia esquecê-lo) tomei a decisão derradeira de minha vida: Andaria sempre munido de papel e caneta. Entrei no primeiro bazar que me veio à vista. Uma loja bonita, grande, repleta de prateleiras que estavam repletas de bugigangas, todas diferentes entre si. O caixa ficava ao fim da loja, de maneira que era impossível durante o percurso não reparar nos mais diversos itens da loja. Pequenos Budas, xícaras de chá, uma infinidade de modelos de relógio, de parede, de pendulo, de pilha e até mesmo um de sol. Imaginei que as canetas e pequenos blocos de papel ficavam no caixa, estava certo e os comprei.
De primeiro comecei a anotar somente as ideias que julgava de suma importância, ideias sobre filosofia, política, literatura e as poesias que lia na janela do ônibus. Depois ocorreu-me de anotar datas importantes do ano, fossem feriados, aniversários ou acontecimentos marcantes. Comecei a anotar também frases ditas por terceiros que eu considerasse bonitas e das frases bonitas passei para qualquer pensamento que demonstrava ser minimamente interessante e quando me dei por conta anotava também as piadas.
O pequenino bloco de notas logo se acabou, cabia ele na palma da minha mão, com mola na parte superior e não devia ter mais de 80 páginas. Guardei a caderneta numa caixa de sapatos que por sua vez foi guardada debaixo da cama, de maneira que se de repente durante o sono precisasse lembrar de alguma ideia podia imediatamente ir a caixa com as memórias contidas no bloco de notas (não lembro se alguma vez realizei isso).
Fui ao mesmo bazar e comprei um caderno maior e com mais folhas, tamanho A6, devia ter cento e tantas folhas, não sei precisar exatamente quantas, só sei que parecia grande o suficiente para parecer infinito já que tinham páginas o suficiente para nunca se esgotarem. Saí da loja e fui pra casa. Na metade do caminho, entretanto, me dei por conta que devido ao anotamento das datas um caderno de páginas lisas não seria o ideal, retornei então para a loja e comprei também uma agenda. Tal agenda tinha a marcação de um dia no cabeçalho e do dia seguinte na metade da folha, servindo assim como uma espécie de diário que anotava pequenos acontecimentos do dia.
Quando me dei por conta eu estava sempre com um caderno no bolso e uma caneta na orelha. Anotava nomes de livros e sinopses de filmes que via que via pelos anúncios, anotava os restaurantes que gostaria de visitar e o horário de funcionamento dos comércios e tudo mais que via pela rua.
Em um par de dias, algumas semanas e não mais que dois meses, o caderno que parecia infinito se acabou. Havia mais acontecimentos no dia do que espaço na agenda e havia pouca tinta na caneta para muita ideia na cabeça e tanto o caderno quanto a agenda-diário foram para a caixa.
Percebi que nenhum caderno na loja seria suficiente ou ideal para escrever tudo que eu gostaria, e justamente esse pensamento que me levou de volta ao bazar. Comprei folhas dos mais diversos tamanhos e gramaturas, pois agora eu produziria meus próprios cadernos, só assim iria satisfazer a demanda, já que agora não controlava somente o que anotava mas também o meio em que era anotado. Fiz cadernos pequenos de muitas páginas para anotar coisas cotidianas de maneira discreta. Fiz os mais diversos tipos de calendários, alguns para lembrar compromissos e outros que destacavam feriados e domingos e outros ainda que marcaram datas de jogos de futebol que eu deveria assistir. Havia cadernos grandes com textos que pretendia publicar mas que nunca tornei a ler por vergonha e desgosto das ideias que pareciam boas no momento da escrita.

Conto TOME NOTA, do escritor Gabriel Molina. Natural de Alvorada, RS, reside no município desde a infância. Estudante de Letras, na UFGRS, adora escrever ficção.

segunda-feira, 17 de março de 2025

 

três semanas perdi um anel, oferta do meu marido no último aniversário de casamento. Durante uma caminhada até ao Santuário de Peneda Gerês, vagueando pelas lojinhas de artesanato local e religioso, vimos um anel em aço dourado com a “árvore da vida”. O meu companheiro enfiou-o no dedo indicador da minha mão esquerda. Foi amor à primeira vista! Esta preciosidade custou a modéstia quantia de 5€, mas para mim teve o sabor de uma joia cara. Nunca mais me separei dele; passou a fazer parte da minha indumentária diária.
Conhecem este símbolo?
A árvore da vida é um arquétipo fundamental em muitas das tradições mitológicas, religiosas e filosóficas do mundo. A sua origem remonta aos antigos Celtas.
Qual o verdadeiro significado por detrás da metáfora?
A árvore sagrada.
Para muitos povos, representa o ciclo da vida com as suas raízes profundas entrelaçadas no solo, simbolizando a ligação com a terra, e os galhos estendidos na direção ao céu, procurando a espiritualidade e a transcendência.
Para os Celtas configurava o equilíbrio, a harmonia e a interligação de todas as coisas no mundo natural.
Independente das variadas interpretações e grafismos, eu sempre quis ter uma peça com a árvore da vida. Este presente fez-me feliz; atrevo-me a dizer que está no top cinco das prendas que recebi.
Estabeleci uma simbiose singular com este objeto; durante meses fomos cúmplices das vivências cotidianas. Até que numa manhã cinzenta e fria, resolvi calçar luvas durante a viagem para o trabalho. Ao descalçá-las perdi o anel. Uma nuvem negra ensombrou os olhos, mas o coração manteve uma chama acesa. Vasculhei o carro sem sucesso. Senti-me desnudada!
Todas as manhãs adornava as mãos entristecida. O dedo indicador esquerdo permanecia nu. Na passada sexta-feira, deixei o carro a lavar. Quando recolhi a viatura, visualizei, pousado na consola, o anel. A alegria que senti foi indescritível.
Nesse segundo, relembrei que a felicidade experiencia-se nos episódios mais singelos da vida! Procuramos constantemente a felicidade em feitos grandiosos, esquecendo-nos que a encontramos quando menos esperamos nos acontecimentos autênticos e nos momentos singulares.

Alexandra Ferreira é autora de Sombras com Rosto (romance, 2019) e de Um Verão Sem Ti (antologia de contos, 2023). Portuguesa, natural de Viseu, reside no Porto. É engenheira civil, pós-graduada em Direção de Empresas e mestre em Engenharia Rodoviária. Integrante do Festival de Literatura e Artes Literárias (FLAL) e do canal Liga dos 7, no facebook. Escreve para revistas literárias e clubes de leitura. Participa, ativamente, de congressos, sendo coautora de diversos artigos científicos.
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Crônica postada, em 25 de fevereiro de 2025, pela autora, no canal Liga dos 7, no facebook.
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domingo, 16 de março de 2025

  


Mulher pobre, rica, santa ou pecadora
mulher motorista, delegada ou professora
menina, idosa, jovem, senhora
mulher que ri, canta e que chora
Mulher que da a vida por outra vida
mulher que deu a luz Jesus Cristo
Mulher negra, branca,índia ou cigana
de espelho na mão e sangue na veia.
mulher que sofre, espera deseja
Que trocou a cozinha pelo copo de cerveja.
mulher que livre perdeu o encanto
mulher objeto, jogada pelos cantos.
mulher fiel, amiga, companheira,
para horas, dias ou para a vida inteira.
Mulher que ama, chora e sente
mulher que de guerrilheira chegou a presidente.
Mulher pobre, rica, santa ou pecadora,
de qualquer raça credo ou cor
serás sempre o princípio da vida
mulher teu sobrenome é amor.


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Poema MULHER, da escritora Ironi JaegerCoordenadora do Festival de Literatura e Artes LiteráriasFLAL, a autora reside em Alvorada, RS.
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Poema postado, em 08 de março de 2020, pela autora, em sua página no facebook. 
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (TÍTULO, BIOGRAFIA E NOTA DE RODAPÉ).

 

 SÓ ÀS VEZES!?


Às vezes me apego,  
peco e desapego.  
Às vezes percorro caminhos de pregos,  
que perfuram o meu ego.

Às vezes me banho em rios de lágrimas,  
da tristeza à felicidade.  
Algumas doem, outras aliviam,  
mas todas revelam a verdade.

Às vezes somos rígidos com palavras e atitudes,  
quando não deveríamos ser.  
Às vezes somos tão ingênuos,  
que mal percebemos as punhaladas da vida.

É... é... é...  
não é só que às vezes somos feitos de sentimentos,  
e, a cada momento, vivemos em busca.  
No entanto, e na verdade, somos ele. 

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Poema SÓ ÀS VEZES!?, da escritora Simone Soares. Educadora popular e embaixadora da Editora Plena Voz, a autora reside em Alvorada, RS, e, desde 2024, organiza, junto com artistas, apoiadores e escritores, a Feira Literária Independente em Alvorada.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).

 

CERTEZAS

 

E se não fosse a poesia?
Eu seria apenas efêmera conjunção 
ligando o nada a lugar nenhum.

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Daniel MachadoGeógrafo da Alma!, é poeta, contista e cronista social. Escreve crônicas sociais para o blogue Humanidades em DebateReside em AlvoradaRS. 
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