sábado, 3 de agosto de 2024


DERRAMOU 

Eu é que não sirvo pra ser mulher de pinguço, minha mãe soprava aos quatro ventos. Conversava com as amigas  no portão de casa, enquanto varria as folhas que caíam das árvores acima de nós. Cada dia era uma que chorava no portão, no assoalho, no nosso sofá. A reclamação era sempre a mesma: a pinga. Minha mãe repetia a sua romaria de que não casaria com marido que bebe, a ouvi falar com uma amiga:
 Carmem, meu pai era alcoólatra, agora tu imagina se eu caso com otro e começo a bebê?!
 Tu tem tanta sorte de tá sozinha Amara, lá em casa é um INFERNO!  chorava a outra.
 Não qué dizê que eu não me divirta só por que eu tô sozinha, eu não sô só mãe.
E assim a conversa rumava outras idas: paixões, desafetos, rumores e segredos. Conversas confidenciadas e que me deixavam o alerta: na vida valia tudo, menos a pinga, a cachaça tão comum entre os viventes. Eu nem tinha idade pra namorar e me pegava pensando nesse assunto:  E eu, não vô podê bebê quando crescê? Se todo mundo faz, deve tê algo de bom.
Minha mãe ia ao samba toda a sexta-feira, desfilava, era a vedete da vila, a exibida com samba no pé. Foi ela quem me ensinou a dançar, a minha avó a ela, e assim por diante. Eu adorava as nossas tardes de domingo, dia de descansar e rodopiar juntas pela casa. Era um tal de "O chefe de polícia" e "Toda a menina baiana", na voz de Gilberto Gil. Mal sabíamos nós da profecia daquela primeira música. Tantas vezes mais tarde tivemos a nossa casa invadida pela polícia, pelos banzés causados pelo marido de minha mãe. Cada dia ou noite um problema. Primeiro éramos nós três, as guerreiras da casa: a avó, a mãe e a filha. Depois, no meio do samba, chegou o outro. Gingou a dança no nosso ritmo até mudar a cadência e nos tripudiar. Os pés que chegaram ágeis e com raízes sólidas, oscilavam no entrelaçamento do álcool.
Imbuído no líquido o homem era feito brasa, consumia o que tocava: dinheiro, comida, roupas, gentes... Implodia  cada gesto à sua volta.  Assim, aprendi a roubar dentro de casa, o lugar que era meu refúgio quando pequena se tornou o não-lugar, o espaço temido e de conflitos. Comecei surrupiando moedas de um cinzeiro que ficava na prateleira da sala.  Usava pra comprar pão quando acabava, minha mãe agradecia pelo gesto.  Das moedas fui para as notas: 10, 20, 60, 200 reais. Eu sentia o peso nos bolsos como se cada papel fosse impresso em chumbo. Eu só pilhava aquelas notas pra que não passássemos fome. Um dia arroz com ovo, no outro arroz com tomate, eu previa o cardápio para o dia seguinte: arroz e só. Se não fossem as minhas mãos de pluma a sacar os valores, eles se transformariam em trago assim que cruzassem o portão de casa para a rua. Amara, minha mãe, não podia trabalhar pois cuidava dos dois guris menores. Não eram saudáveis, mais um motivo para que eu afanasse mais, mais, mais e mais notas, precisávamos pagar os remédios.
Em uma de nossas tardes, um vendedor de porta bateu em nossa casa prometendo compartilhar conhecimentos de lugares diferentes do mundo todo, implorei à minha mãe que o deixasse entrar.
Fiquei tão maravilhada com o livro de 1.000 páginas que ela decidiu comprá-lo. O vendedor deixou-a pagar em 10 parcelas de 32 reais! Combinamos que ele viria às terças-feiras, no início da tarde, a garantia de que o homem da casa estaria no horário de trabalho. Eu seguia saqueando quantias para todas as nossas fomes. Eu precisava de outras sabedorias e minha mãe sabia disso. Na penúltima parcela, o homem cambaleante chegou mais cedo em casa e o vendedor se atrasou. Ambos se encontraram e trocaram meio dúzia de palavras. E assim começaram as brigas repletas de açoites, o homem que antes achava perder o dinheiro, agora entendia a presepada e pra abrandar usava a minha mãe. Esse foi um dos dias mais sofridos de minha vida. Nunca havia visto alguém pingando tanto. O sofrimento de minha mãe foi o meu sofrimento.
Depois desse episódio, comíamos uma vez ao dia e supus que teria que devolver o livro pago com os tostões malditos. A escassez dilatou e eu praguejava dia e noite: ai de mim sê igual a ele! Escamotear tornava cada momento mais intragável. Nas entranhas eu suplicava aos meus, que Mandela rompesse das páginas lidas e viesse em meu socorro como fazia com tantos outros. Uma vizinha soube do ocorrido e nos contou de uma ação do governo que auxiliava pessoas em condições como a nossa. Escondidas dos pés vagantes, fizemos o cadastro na prefeitura e, a partir disso, mostrávamos a bran- cura dos dentes. Uma vez na semana comíamos bifes de carne de gado, tudo no maior dos segredos. Passado algum tempo, juntando moedas ofertadas por minha mãe, comprei uma sandália laranja com cinza e verde, a mais linda que vi na vida! E assim continuamos, com a nossa vida paralela de pequenas alegrias.
Às vezes eu fantasiava que vivia numa casa de fadas, remontava o sentimento da época em que só havia as donas da casa. Minha avó me deu uma cama com baú que tinha um armário com fundo falso, eu fechava os olhos e imaginava que era uma passagem secreta, e que do outro lado haveria moedas de ouro, flores silvestres das mais coloridas e animais falantes. Rompia as noites nessa imaginação.
Havia dias que me encontrava cansada já pelas quatro da tarde, pois mal havia dormido na noite anterior sonhando com todas as riquezas da vida. Chamava o espaço do quarto reservado a mim de "Refúgio Feliz", um lugar só meu, de beleza e felicidade.
Minha mãe também encontrou o seu espaço de contentamento dentro de seu pensamento: estava decidida a voltar a sambar na rua. Comprou um tecido e as mulheres da casa, como dizia ela, se colocaram a costurar. Cosemos dois vestidos iguais: um para mim e outro para ela - que iria ao samba de final de semana. Queria tudo o que era dela e que com o tempo esqueceu de reivindicar! Bradejava. Alinhamos tecidos e fios durante duas semanas, entre as tarefas da casa e o cuidado com os filhos-irmãos. Minha avó, na sua tenra idade e tempo outro, bordou as mangas com adinkras de boa sorte. Um arranjo com pedrinhas douradas do tamanho de grãos de areia. Ao revoar soavam como gotas de orvalho caindo em folhas pela manhã. A cada ponto a avó contava uma história das mulheres que vieram antes dela e que lhe ensinaram cada movimento. Eu me enredava naqueles relatos e só saía de perto quando ela cansasse das agulhas.
A noite do samba se fez. Eu escutava a música do pátio de casa e volteava com meus irmãos e minha avó. Que farra! O homem que se dizia dono da casa estava bebendo na rua e não sabia o que se passava dentro ou fora do nosso teto, melhor assim. Além de bater perna, minha mãe estava decidida a trabalhar. Já estava tudo arranjado: eu cuidaria de meus irmãos com a orientação de minha avó e minha mãe compraria comida e roupas novas, e ainda separaria um dinheiro para emergências. As ameaças de morte aconteceram quando quis ajudá-la nessa empreitada, na minha rotina ácida fiz folhas de cheques sumirem de um lado e reaparecerem de outro. Uma delas foi achada pelas pernas cambaleantes. Tudo por causa da pinga! Bradava minha mãe pela casa. Junto à primeira pingávamos nós, em irmandade com as que serpenteiam pelos pampas. Em uma das sextas-feiras de horror, foi a última gota, minha mãe e aquele homem gritavam:
 Eu preciso de dinheiro pras crianças! — vociferava ela. 
 Eu não vou mais botar UM ÚNICO REAL para dentrodesta casa! — respondia o covarde levantando a mão.
Como era irritante ouvir todos os Ss e Rs na boca daquele patife. Era um crápula com estudo, ex-aluno de um internato alemão. Suas palavras gozavam da nossa cara pelo seu poder de nos dominar e pela nossa falta de instrução à época. E pingou. Levei os pequenos para o quarto. Eles choravam. Compulsivamente. Ouviu- se um som de trovão. O último estouro em meio ao caos. Um arquejo de rasgar o vento. E tudo cessou.
Um silêncio ensurdecedor varreu a casa e seguido dele minha mãe rompeu em lágrimas e pranto. Eu estava com um mocho na mão. Minha mãe não me questionou ou revoltou, apenas tirou-o de minhas mãos e o colocou numa bombona de lixo. Eu me tranquilizei. Amara, batizada por minha avó com a palavra sagrada, me deu que por meio de nossos ancestrais uma nova chance, a misericórdia carregava no nome. O silêncio de minha mãe significava um mundo inteiro. A prova de que eu participava de um grupo maior, um pacto entre as nossas. O silêncio de minha mãe foi o meu silêncio: eu não tinha visto, feito, ouvido ou lembrava de nada do que aconteceu naquela noite. Parte da memória também é esquecer. A ambulância chegou rapidamente, chamada pelos vizinhos, e levou o homem sem fazer perguntas. O velamos até o hospital, sempre ao seu lado. O médico falou que ele teve um derrame. Sem verbalizar, ruminei que foi a pinga que o corroeu. De dentro para fora. Derramou.

A escritora Tainã Rosa mora em Alvorada, RS, é professora, contadora de histórias, artista visual e produtora cultural. Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica. Graduada em Pedagogia e Mestra em Letras, Estudos Literários, pela UFRGS. Teve um período de estudos na Universidade do Porto, Portugal. Pesquisadora de literaturas pós-coloniais, artes pós-coloniais, relações etnico-raciais e educação interdisciplinar. Doutoranda, em Letras e Culturas Ibéricas e Latino-americanas, na Universidade do Texas, Austin, EUA. (tainaproducaocultural@gmail.com).
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Conto publicado em 2021, no livro CONTOS DE ALVORADA, coletânea lançada pelo Clube dos Escritores de Alvorada (editora meia-noite). 

quinta-feira, 1 de agosto de 2024


JORNADA CULTURAL EP#06 FABIANO VAZ

O escritor Fabiano Soria Vaz mora em Alvorada, RS, é professor e pesquisador. Escreveu artigos para o livro RAÍZES DE ALVORADA e o site A Trincheira: a História em debate em Alvorada. Autor de O PIONEIRO DO PASSO DO FEIJÓ, conto da coletânea CONTOS DE ALVORADA, do Clube dos Escritores de Alvorada (dizedoria@gmail.com).
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Neste podcast, do dia 31 de julho, o autor foi entrevistado pelo músico Maninho Melo (programa JORNADA CULTURAL, portal Alvoradense).

O dia começou cinza, com as nuvens carregadas anunciando a chegada da chuva. O som das gotas batendo suavemente no telhado trouxe uma sensação de aconchego e tranquilidade. Era como se a natureza estivesse tecendo reclamações que os humanos não estavam dispostos a ouvir. Enquanto as cidades acordavam aos poucos, as ruas eram tomadas por guarda-chuvas coloridos e solitários passantes que caminhavam apressados para escapar da umidade.
Mas alguns, como eu, pararam por um momento para apreciar a dança das gotas caindo, criando padrões hipnóticos nas poças de água. A chuva trouxe uma calmaria diferente, um convite para desacelerar e se permitir contemplar a vida de uma forma mais poética. Nos bares, o cheiro de café recém-passado se mesclava com o aroma da terra molhada, trazendo uma sensação de nostalgia.
À tarde a chuva se intensificou, transformando o ritmo acelerado da cidade em um suave murmúrio de grossas gotas batendo no chão e criando poças intensas. Os carros agora passavam lentamente pelas ruas, criando ondas de água que refletiam as luzes dos postes, em um espetáculo visual digno de contemplação.
Os pássaros sentiram a tensão e cantaram de uma forma diferente, triste, agitados procuraram abrigo nos galhos mais altos das árvores. O canto se misturou ao som da chuva e os humanos não pararam para ouvir a melodia da natureza.
Enquanto isso nas casas e apartamentos, famílias reunidas em torno de uma xícara de chá ou café quente, ouviam incrédulos o que acontecia, cidades inteiras eram inundadas pela mesma chuva que antes proporcionava aconchego e contemplação.
A noite chega silenciosa com a chuva ainda caindo. Os carros permaneceram nas ruas, as casas que eram lares seguros e aconchegantes viraram lagos. Os transeuntes eram agora pessoas que fugiam da fúria da água. Nos bares não havia café recém-passado, mas lama e água. A chuva intensa tomou ruas, avenidas, carros, não fez distinção entre ricos e pobres. Deixando-os em pé de igualdade e sofrimento.
Cidades inteiras alagadas, destruídas, um incalculável prejuízo e muita tristeza. A chuva que começou poética e suave, causou a maior destruição já vista em um estado brasileiro. Mas em tudo isso o povo gaúcho conheceu a solidariedade dos irmãos brasileiros de Norte ao Sul, e até de países estrangeiros.
Levará tempo até que possamos novamente enxergar poesia em um dia de chuva. Aos poucos entendemos que apenas usamos o espaço que é das águas, e quando ela chega para retomar seu espaço por alguns dias, nós humanos devemos sair do caminho, sobreviver, e reconstruir.

A escritora Ironi Jaeger é coordenadora do Festival de Literatura e Artes Literárias (FLAL). Mora em Alvorada, RS.
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Crônica postada, em 24 de junho de 2024, pela autora, em sua página no facebook. 

segunda-feira, 29 de julho de 2024

O ANIMAL

A mãe do menino não deixava ele ter um animal de estimação. O menino queria muito.
 Mãe, hoje tem uma loja de animais aberta. Amanhã a loja estará fechada.
A mãe dele nem respondeu.
O menino ficou triste.
A mãe viu o menino e decidiu: nada de mal ele ter um animal de estimação.
Ela trouxe para ele uma gaiola com um canário, e o menino botou o nome de Bicudo. E depois o menino ficou com pena e soltou o pássaro.
A mãe do menino ficou muito brava com ele.
O menino chorou. Acho que ele queria um gatinho.
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Conto O ANIMAL, do escritor Thommy Porto, na época com sete anos de idade, publicado em 2002 no livro Alvorecendo: escritores e poetas de Alvorada (RS), coletânea de contos, crônicas e poemas organizada pelo Clube dos Escritores de Alvorada.

domingo, 28 de julho de 2024

     

FIOS DE PRATA

Por entre teus cabelos
Perdiam-se fios de prata 
Temente de tua dureza 
Virtuosa Lua me diz
Moderai teu amor

Saio em fuga
Pela noite afora
Sinto o frescor de
Teu colo seguir-me
E tenho novamente 
A formosa Lua
Que dança para mim 
E mulher se revela.

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Poema FIOS DE PRATA, da escritora Vanessa Millis, publicado em 2002 no livro Primavera Poética, coletânea de poemas organizada pelo Clube dos Escritores de Alvorada.


O PIONEIRO DO PASSO DO FEIJÓ

Quando o velho Manoel cruzou o arroio pela última vez, no inverno de 1835, aquele curso d'água já levava seu nome. O cavalo tobiano conhecia o ritual: chegou sem pressa e parou para beber das águas geladas e cristalinas, enquanto o velho contemplava seus campos. Desta vez, porém, Manoel estendeu a vista para o leito do Arroio Feijó, que avançava devagar e sem pausas. "Como o tempo", pensou.
Manoel de Souza Feijó fora pioneiro naquelas terras. Soldado nascido em 1753 na ilha açoriana de São Miguel, com 27 anos apeou naquele ponto dos campos de Viamão, entre o Porto dos Casais e a Aldeia dos Anjos. Dedicou seus melhores anos a desbravar cada palmo, desde que sua majestade lhe concedeu a quadra de terras, em 1780. Veio para o Brasil encorajado pelo ciclo do ouro, mas suas incumbências o levaram para bem longe das minas. No Continente de Rio Grande de São Pedro, a coroa portuguesa havia consolidado a estratégia de povoamento e, com a invasão castelhana, em 1763, acelerou a distribuição de terras a militares, como forma de garantir a posse e a defesa dos territórios contra uma nova invasão.
Voltou a montar, ajudado pelo neto Francisco Ramires. Avançou pela estrada até a forquilha, mas não desceu em direção à sede. Seguiu à direita, em direção aos pés de cocão, por meia légua. Queria ver a prainha, como chamava a lagoa na subida da coxilha. A paisagem lhe tocava fundo na alma. Ali ensinara os filhos a nadar, gostava de levar os netos nos dias de verão.
Mas ainda lhe doía a saudade das tardinhas ali com Inácia Felícia, sua primeira esposa. Foram quarenta anos divididos com ela antes de enviuvar, em 1822.
Chegaram em casa já com a lua nos calcanhares. Claudina Maria os recebeu no pátio, advertindo Manoel com falsa indignação. Sabia que ele estava muito doente, mas sabia também que aos 82 anos não se põe cabresto em ninguém. O pequeno Francisco correu pra abraçar o pai. Era o último dos dezoito filhos.
A doença evoluiu rápido. Nas semanas seguintes, Manoel não pôde sair da estância e, em meados de agosto, já não saía da cama. Recebeu muitas visitas de familiares e vizinhos. O Pe Bartolomeu, pároco da Igreja Matriz de Viamão, onde casou e batizou os filhos, lhe concedeu distinção ao celebrar missa na sede da fazenda.
Uma tarde, recebeu Angelo Inácio de Barcelos e a esposa, Alexandrina. Estavam felizes, esperando o segundo filho. Claudina perguntou pelos nomes. "Se for menino, terá o nome do avô paterno, Diogo Inácio. Se for menina, será Ana Inácia, como minha mãe" disse Alexandrina. Embora as terras para lá das figueiras pertencessem ao falecido Diogo Inácio de Barcelos, este pouco vinha àqueles lados. Aparentemente, Angelo havia herdado aquele pedaço, mas tampouco lhe dava uso.
Após o café, Angelo sentou a sós com o velho. Queria se aconselhar a respeito de um assunto. Estava preocupado com o clima político na província. Os estancieiros, principalmente do sul, estavam descontentes. Nos últimos meses, houve reuniões na casa do Gomes Jardim, na freguesia das Pedras Brancas. Queria saber se os Souza Feijó haviam sido convidados e se pretendiam tomar partido.
Mas Manoel também estava inseguro sobre o que fazer. Sua condição mudara desde 1822. Após a independência, Dom Pedro havia tratado de garantir as concessões aos portugueses que viviam no Brasil. Mas Manoel sabia que, aos olhos do povo, seguia sendo um estrangeiro nessas terras.
Para piorar, o imperador abdicara ao trono em 1831. Seria prudente confrontar o império? Seu filho Desidério lutara na Guerra Cisplatina, pelo qual atingiu o posto de alferes do exército imperial. Com certeza sofreria sanções. Além disso, os oposicionistas representavam movimentos bastante diversos e mesmo antagônicos. Haviam imperialistas, republicanos, separatistas, abolicionistas, liberais e libertários. Essas alianças se sustentariam? Quais ideais prevaleceriam? Por outro lado, apesar de os rebeldes não terem apoio significativo em Porto Alegre, estavam geograficamente muito mais próximos. Se fossem vitoriosos, as consequências poderiam pesar sobre os indiferentes. Manoel rezava para que o entrevero se resolvesse no campo da política, e incentivou Angelo a fazer o mesmo.
Dias depois, pediu que lhe assentassem na varanda. Assistiu satisfeito ao rodeio improvisado pelos meninos Joaquim e Antônio, de seu casamento com Ana Maria. Perto dele, o pequeno Francisco retouçava com os cachorros. Claudina sentou-se ao seu lado com o mate e ouviu instruções a respeito do inventário. O velho não quis almoçar. Puxou a coberta. O vento fresco de início de setembro contrastava com o Sol, que amornava tudo que tocava. As árvores balançavam ritmadas e dos galhos se ouvia os pássaros saudando o fim do inverno. A sensação lhe aconchegou o coração. Teve sono. Adormeceu, sereno, e não tornou a abrir os olhos.
Duas semanas depois, grupos armados tomaram Porto Alegre, iniciando uma guerra que duraria dez anos.


SOBRE O AUTOR

Fabiano Soria Vaz é professor e pesquisador com artigos publicados no livro Raízes de Alvorada e no site A Trincheira - A História em debate em Alvorada. Mora em Alvorada, RS (dizedoria@gmail.com).

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Conto publicado em 2021, no livro CONTOS DE ALVORADA, coletânea lançada pelo Clube dos Escritores de Alvorada (editora meia-noite).

*Obra de ficção baseada em personagens reais e fatos históricos.

   

PROJEÇÃO

Entre todos os beijos 
que não trocamos.
Entre todas as canções
que juntos não escutamos.
Trago a certeza que o meu sentimento
foi muito mais que projeção.

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Poema PROJEÇÃO, do escritor Daniel Machado (Geógrafo da Alma!).

sábado, 27 de julho de 2024

PRIMEIRO AMOR

Todo brilho no olhar
No beijo tanta pureza
Num gesto a delicadeza
Nas mãos a indecisão.
Coração latente
De tanta paixão!
No sonho toda magia
Olhar fixo no vazio...
Nos lábios um sorriso
Todo amor no coração!
O tempo com certeza parou
Se curvou, transformou
Aquele momento em poesia
Nas mãos a indecisão...
No corpo a transformação
Olhar de menino
Coração de homem!

SOBRE O AUTOR

Integrante do grupo de teatro ARTEMANHA, o ator e poeta Diego Leite, participou por quatro anos do grupo TRANKOS E BARRANCOS. Com larga experiência em teatro, escreve e dirige peças para a comunidade.

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Poema publicado em 2005, no livro Alvorada Fazendo Arte: contos & poemas, primeiro livro lançado pela Feira do Livro da Cidade de Alvorada (Clube dos Escritores de Alvorada e Círculo Literário).

quinta-feira, 25 de julho de 2024

PARABÉNS A TODOS OS ESCRITORES! 

quarta-feira, 24 de julho de 2024

quarta-feira, 26 de junho de 2024

UM CONTO DE FLORES

Em uma aldeia na entrada das terras do reino da Vitória Régia havia uma rua muito conhecida pelos viajantes e mercadores. Depois de longas viagens por estradas perigosas e caminhos íngremes, ali encontravam uma aconchegante hospedaria e uma movimentada taberna, onde achavam pousada e alimento. Os homens se aglomeravam alegres e faziam grande algazarra. Quem passava por ali sentia a festiva agitação e o rebuliço constante.
Porém, na medida que se adentrava pela rua, todo aquele clima de festa desaparecia, dando lugar a um ambiente pobre e sombrio. E lá no fundo, encostada no muro de um castelo em ruínas, havia a choupana de um humilde carvoeiro. Aos trinta e cinco anos, já parecia um velho, devido ao seu trabalho. Ele morava com a mulher, a filha de quinze anos e oito filhos mais novos.
A filha do carvoeiro, Hortênsia, desde cedo teve que trabalhar com muita dureza, ajudando sua mãe, a lavadeira Magnólia, nos serviços domésticos da casa. Logo que amanhecia, tinha que acender o fogo, preparar as parcas refeições para a família e cuidar dos irmãos mais novos. Quando não havia o que comer, saia como uma mendicante pelas ruas da aldeia em busca de alimentos. Muitas vezes ia pegar os restos de comida que eram jogados por trás da taberna. Sentia-se envergonhada, mas já tinha ouvido várias vezes o pároco dizer na igreja que a pobreza era a vontade de Deus e a verdadeira riqueza seria encontrada no reino celestial.
Contudo, apesar de toda esta vida de penúria, Hortênsia era uma moça cheia de esperanças. Romântica, vivia sonhando com uma festa de aniversário cheia de doces em um castelo rodeado de flores. Todos os anos era a mesma coisa, a mesma ilusão! E a cada ano seu aniversário passava sem um doce sequer.
De vez em quando, Hortênsia via partir da taberna, carroças carregadas de cestas com doces de diversos sabores. Em outras ocasiões, carruagens bem ornamentadas vinham pegar encomendas enormes. Nestes casos, ela sabia que elas iam para as festas dos nobres nos castelos e até mesmo para o palácio do rei. Lá, os aniversários do rei, da rainha, príncipes e princesas eram comemorados com grandes banquetes e bailes, onde haviam tantos doces que até se estragavam.
Além de desejar muito uma festa repleta de doces, Hortênsia sonhava com as estórias que ouvia pela aldeia. Sempre que havia festas religiosas ou folguedos populares, apareciam companhias de saltimbancos ou grupos de trovadores, que encenavam ou recitavam belas estórias, como as que tinham fadas madrinhas socorrendo suas protegidas. Porém, nessas estórias, sempre as personagens principais eram princesas deslumbrantes que no final se casavam com príncipes maravilhosos e vivam felizes para sempre em lindos castelos. Quando sua mãe a ouvia falar sobre contos de fadas e princesas dizia:
 Acabe com isso. A vida não é um conto de fadas! Os ricos vivem em um mundo de flores, mas para os pobres só restam os espinhos. Olhe para mim. Vivo lavando roupas nos castelos dos ricos e eles sequer me olham. Para os ricos, nós não temos nenhum valor!
Hortênsia já estava prometida em casamento para o filho de Jacinto, um lenhador conhecido do seu pai. Porém, ela não sabia quem era o rapaz e tremia de medo só de pensar em ser entregue a um brutamonte. Já tinha visto outras meninas serem dadas em casamento e levadas à força por seus maridos.
Hortênsia ia fazer dezesseis anos e este seria seu último aniversário com a família. Sua mãe tinha lhe dito que seu casamento já estava arranjado. Mais do que nunca, ela queria comemorar o aniversário com uma festa repleta de doces. Porém, na sua data natalícia, ela viu a dura realidade de sempre.
Naquele dia Hortênsia acordou cedo e acendeu o fogo. Quase não havia víveres em casa. Seu pai comeu um pedaço de pão bolorento, tomou água de um odre velho e saiu para o trabalho. O dia foi passando no mais absoluto marasmo. Hortênsia ajudou a mãe nos afazeres domésticos, cuidou dos irmãos mais novos e saiu para perambular pela aldeia em busca de algo para comer. Quando passou pela taberna viu uma carruagem abarrotada de cestas de doces partindo em direção à cidade. Seus olhos brilharam de desejo e seu estômago revirou de fome. E assim a jovem ia passar mais um aniversário!
Porém, quando a carroça ia contornando uma colina e descendo em direção ao exuberante vale do rio Cravo, parou e retornou em direção à aldeia. Um arauto do rei, que trouxe a ordem do palácio real, aproximou-se gritando:
 Por ordem da princesa Azaleia o carregamento de doces para sua festa de dezesseis anos deve ser devolvido na taberna e entregue a uma aldeã pobre. Ela está fazendo isto em pagamento a uma promessa pela recuperação da senhora sua mãe, a rainha Gardênia. A rainha esteve gravemente enferma, mas hoje, depois de vários meses, conseguiu levantar-se do leito.
Ao ouvir o arauto, um rapaz adiantou-se, dirigiu-se ao cocheiro real e disse:
 Há uma jovem na aldeia fazendo dezesseis anos exatamente hoje. É justo, digníssimo cocheiro real, que ela seja merecedora de tão gostosas guloseimas! Não estou com brincadeiras. Eu mesmo o levarei à casa da mais bela moradora desta aldeia, que serve ao nosso rei com toda lealdade!
Ao ver as cestas de doces devolvidas na taberna, Hortênsia não entendeu o que estava acontecendo. Também ficou completamente envergonhada quando o jovem desconhecido se aproximou dela e falou-lhe:
 Sei que estás fazendo dezesseis anos hoje, pois isto ouvi do teu pai, o carvoeiro Gerânio. E já que a princesa está doando os doces do aniversário dela, é justo que sejam para ti. Convenci o cocheiro e o arauto real a doarem para festejares teu aniversário. Hoje terás uma festa de princesa!
Com todos olhando para ela, Hortênsia ficou envergonhada. Correu para casa e contou sobre as cestas de doces. Avistando o jovem, sua mãe disse-lhe:
 Ele é o jardineiro do castelo do conde Delfino. Chama-se Antúrio e foi com ele que teu pai acertou teu casamento. Não te preocupes, pois ele é muito cortês.
Foi o aniversário mais feliz da vida de Hortênsia! E diferentemente do que temia, o homem para o qual estava prometida não era um brutamonte. Dois meses depois casaram-se e tiveram cinco filhos e quatro filhas: Aliso, Jasmim, Crisântemo, Amaranto, Narciso, Margarida, Pétala, Rosa e Tulipa. Foram muito felizes, pois Antúrio, zeloso e trabalhador, nunca deixou faltar víveres em sua casa, ao lado da qual plantava muitas flores.
E Hortênsia, que sonhava com um conto de fadas, teve um conto de flores e uma vida florida para sempre!


SOBRE O AUTOR

Natural de Jaboatão, Pernambuco. Filho de Manoel e Marina Lima, casado com Alcione Lima e pai de Anália Rebeca e Areli Suzana. Formado em Administração, Teologia e História. Professor na Escola Monsenhor Arruda Câmara (EMAC) e pastor da Igreja Batista, em Sítio Novo, Olinda. O escritor Marinaldo Lima conta com diversos prêmios nacionais em concursos literários de contos e poemas.

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Conto publicado na coletânea do Concurso de Contos da Editora Philia 2023.  

ALVOROÇO NA PENITÊNCIA

Belos tempos os das penitências. Nesta época de calor o sol escaldante o dia até fica enorme e até se transforma em fogão... Uns dizem: “tem um sol pra cada um”; e outros: ”Este sol dá pra fritar até ovos no asfalto.” E assim vamos suportando a temperatura de acordo com o tempo tem aquele que se ajoelha e: ”O que Deus manda a gente tem suportar.”
no povoado do Capão de Dentro, onde os mais antigos ainda se reúnem neste tempo de calor, ainda se fazem a penitência e os fiéis da Capela de Nossa Senhora do Amparo e o se Padre reúnem e ainda convida os moradores das redondezas, para realizar aquele ato de fé. Molhar o cruzeiro para a chuva cair em abundância.
O Seu Tinôco que é festeiro e Sacristão da Capela e já ordenou:
— Óia gente. Nóis vai sigui o istradão do Riacho Fundo. O Pade Jeremia vai isperá nóis lá. Vamo rezano frevorosamente. Chegano lá, nóis enche as muringa d’água e segue inté o cruzêro.
A Dona Idalina, esposa do Seu Joaquim Birita, este, gostava de uma cachaça e tudo pra ele era motivo para tomar uma. Ela foi logo entrando na conversa:
—  Juaquim, tá iscuitano? Vamo rezá cum fé e nada de bebedêra, quando a gente passá perto da Venda do Seu Zé Catira ocê nem óia.
O Joaquim Birita só sacudiu a cabeça. Já com a moringa na mão, ele seguiu a multidão. Só que o sol estava muito quente, ele virava a moringa no queixo e alguns observando aquilo, lembraram-se da fala do Sacristão e que a água seria apanhada no Riacho Fundo.
O João Pé de Cana, outro marafeiro, vendo aquilo logo sentiu sede repentinamente e:
— Nossa gente, que sede! Ô Juaquim, me dá um gole dessa sua água, senão vou desmaiar?
O Joaquim sem saída lhe entregou a moringa. Quando ele deu aquela golada, era cachaça. E ele para não dedurar o Joaquim e também ficar sem a danada pelo caminho agradeceu:
— Nossa que água gostosa sô! É de vereda, Juaquim?
Pensa no aperto que ficou o Joaquim. E ele:
 É. E peguei ela bem cedim. Tá fresquinha!
Ouvindo aquilo os fiéis alvoroçaram e a seda foi geral e vendo que a coisa não ia ficar bem, os dois caíram no mato numa correria desenfreada.
no pé da Serra do Tamanduá, eles pararam para descansar e tomar mais uma. Lógico. E quem vem lá com a batina toda empoeirada e todo suado? Isso mesmo: o Padre Jeremias. E vendo os dois debaixo da sombra fresca da Aroeira:
—  Joaquim e João. Graças a Deus encontrei vocês. Estou numa sede danada. Passa-me essa moringa pra eu beber um poço dessa água.
E agora?
O Joaquim e o João com a moringa de cachaça e qual a desculpa?
O Padre afoitamente pega a moringa da mão do João e dá aquela golada. Os dois com as mãos nos olhos e com medo. E o Padre:
—  Uai! Eu não sabia que vocês também gostavam de um golinho!
Os dois boquiabertos, falaram ao mesmo instante:
— Pade! O sinhôre tomém bebe?
O Padre já animado:
— Meus filhos! O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem. Vamos pra penitência.
Chegando ao Riacho Fundo, foi aquele alvoroço e a Dona Idalina xingando o Seu Joaquim e o Berranteiro Josué queria esganar o João. E o Padre:
—  Meus irmãos! Ouçam... Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra. ' (Jo 8,7).
Foi um silêncio profundo e o Padre continuou:
—  Vamos encher as moringas, Menos a do Joaquim. Ela tá furada.
Seguiram com as orações nos lábios e ao chegarem ao cruzeiro foi aquela fé gigante.
Voltaram pra casa e dentro de poucos minutos a chuva veio em abundância. O Padre Jeremias chamou o Joaquim e o João para se confessarem e o João:
—  Pade. Me perdoa. Mais eu góstio duma alambicada.
O Padre consentiu com o gesto e o Joaquim logo se apresentou para confessar e:
—  Pade. Pode castigá nóis.
O Padre olhou para um lado e para o outro e disse bem baixinho:
—  Não meu filho! Mas, vê se você leva o tira-gosto da próxima vez!
Tudo terminou bem, o Sacristão ficou feliz, a lavoura em abundância, Dona Idalina perdoou o Seu Joaquim, e o Seu João chegou feliz em casa.
Dizem que o Joaquim e o João são os novos sacristãos da capela.
Será que deixaram de beber? O estoque de vinho do Padre Jeremias é grande.
Agora é aguardar a tão badalada Festa da Lavoura. E dizem que o Raimundo do Bento e a Benedita vão carregar o estandarte de São José. O santo fazedor de chuva.
Estou pensando em ir também. E você?
Coisas do sertão!


SOBRE O AUTOR

Antônio de Fátima Silva, o Mestre Tinga das Gerais, natural de Corinto-MG, poeta, ator e cantor e na estrada há 35 anos. Participou de vários festivais, sendo premiado com o conto "O Caboclo e o Barranqueiro", atuou no curta-metragem "Um outro Tiradentes" e no longa "A História das Três Marias", da cineasta Zakia Daura.

                                             
                                                   FORMA ANÔNIMA

A noite flerta com o frio receoso,
Chá na caneca com estampa de cinema
Onde busco uma película para te resumir.
Cervantes me lembra que apesar dos dragões
Minha Dulcineia Del Toboso
me espera escutando La Oreja de Van Gogh
Ilustrando canções que febrilmente e de forma anônima
dedico a ti.

Poema FORMA ANÔNIMA, do escritor Daniel Machado (Geógrafo da Alma!).

sexta-feira, 24 de maio de 2024

 

A MINHA PASÁRGADA


Vou me embora para Pasárgada,
mas não a Pasárgada do genial escritor
e sim a que habita as cercanias da minha hipocrisia,
da minha desfaçatez e profunda incoerência.
Incoerência essa que permeia minhas relações,
onde a mulher que também quero e a cama que também desejo,
me são direcionadas.
Não porque eu seja amigo da realeza,
Mas sim pelas minhas péssimas atitudes
Tão comuns e marcantes na vida dos “Nobres” ou dos que se julgam ser.


Poema A MINHA PASÁRGADA, do escritor Daniel Machado (Geógrafo da Alma!).

 

O SEGUNDO DA FILA
Seu Generoso é um caboclo enraizado, mora lá nas bandas de Alto Belo e batalhador desde criança, na foice e no machado é um desbravador e gosta das coisas certas. E diz sempre:
 Cumigo é anssim: pau é pau e pedra é pedra. Nada de me inrolá.
Com problemas renais, o médico depois de muito labutar com exames e medicação, resolveu fazer a cirurgia e implantar o rim. O falado transplante.
Bom. Dona Elmira, sua esposa já cansada da lida, foi até ao Banco de Órgãos para saber a colocação do Seu Generoso e acelerar o processo da cirurgia.
Chegando ao Banco de Órgãos:
 Talde pessuale! Tudo bão? Eu sô a Elimira muié do Generoso. Cumé que tá a situação da doação do órgo do meu marido? Quale a colocação dele?
A atendente olhou pacientemente o fichário e:
 Boa tarde, Dona Elmira. Tem 235 pessoas na frente dele.
Aquilo deixou Dona Elmira triste e quase em pranto.
E ela:
 Nossa tadim do Generoso! Pode inté morrê. Esse tantão de gente na frente dele! Mais, Deus é generoso!
Ela saiu dali cabisbaixa e foi-se embora. Chegando a casa o Seu Generoso:
 Qualé a boa nutiça?
Ela receosa e triste:
 Óia Generoso. Têm 235 pessoa na sua frente. Agora é isperá e tomá os remédio direitin.
Seu Generoso ficou mais triste e:
 É! Inté chegá a minha vêis, acho que já fui pra cidade de pé junto!
Dona Elmira arrasada foi pra cozinha fazer o pão de queijo e o cafezinho que ele tanto gosta e ele ali na sala ouvindo o radinho de pilha. E no rádio:
Atenção ouvintes de todo o Brasil. Da cidade, da roça, nossa rádio vai longe! E atenção para esta nota: o Milionário e divulgador Valtão acaba de passar por um procedimento cirúrgico e fez o transplante do coração e ele é o segundo da fila. Ele passa bem e está sob cuidados. Mais tarde ele concederá até uma entrevista. Não perca!
Aquilo aguçou o pensamento do Seu Generoso e:
— Uai, muié! Esse tale de Valtão numa tava bão e iguale coco cisdia mermo? Eu inté vi ele na televisão na cidade. Tem um trem errado nisso. Essa fila dele andô dipressa dimais uai!
Ela veio depressa da cozinha com o pão de queijo no prato e o café no bule e:
 Uai, Generoso! É mermo! Aqui no Brasile tem pôca gente cum pobrema de coração. Purisso que a fila andô dipressa. Ô intão temcascaio nisso. Bufunfa, cobre, vô fiscalizá isso.
Dona Elmira resolveu voltar ao Banco de Órgãos pra saber da demora. Só que quando ela havia ido à cidade pra saber da colocação do Seu Generoso ela passou na lotérica e registrou uma cartela da Mega Sena. Quando ela calçou o chinelinho surrado e ajeitou o lenço na cabeça, no rádio:
Atenção senhoras e senhores para o resultado da Mega Sena acumulada. 72 milhões. Que sabe você é um ganhador?
E informou o resultado. Dona Elmira acertou os seis números e ganhou sozinha. Aquilo foi uma alegria e um rebuliço e os filhos alegres, Baltazar o filho mais velho arriou o cavalo e saiu em disparada pra cidade e espalhou o acontecido. Claro que chegou até ao Banco de Órgãos.
Dona Elmira no colo da emoção:
 Generoso! Vamo cumigo pra mode nóis sabê a colocação no Banco de Órgo e tomém cumemorá com o cumpade Onofre e a cumade Zefa!
Ele mais que depressa calçou as botinas, deu uma calibrada no chapéu e foram.
Chegando ao Banco de Órgãos, o médico, enfermeiras, o povo do vilarejo, o Baltazar já havia tomado umas biritas e Dona Elmira:
 Óia pessuale! Eu vim inté aqui pa mode sabê, proquê a fila do órgo coração acelera e a do rim é iguale tartaruga?
A atendente já estava abraçada ao pescoço do Baltazar e:
— Pega um copo com água pra Dona Elmira e um cafezinho para o Seu Generoso. Óia a senhora acredita que o Seu Generoso é o segundo da fila?
Bom. Vou deixar esta pra vocês opinarem.
O que será que aconteceu?
A fila andou depressa!
Eu não disse nada...


SOBRE O AUTOR

Antônio de Fátima Silva, o Mestre Tinga das Gerais, natural de Corinto-MG, poeta, ator e cantor e na estrada há 35 anos. Participou de vários festivais, sendo premiado com o conto "O Caboclo e o Barranqueiro", atuou no curta-metragem "Um outro Tiradentes" e no longa "A História das Três Marias", da cineasta Zakia Daura.

POEMA DA MATEMÁTICA

A matemática está em nosso cotidiano
Desde o amanhecer até o pôr do sol.
Entra pela noite, até quando dormimos,
Em cada fio de tecido, urdido no lençol.

Quando respiramos os alvéolos funcionam
Produzindo a hematose lá dentro dos pulmões.
Com precisão está renovando o nosso sangue
Matematicamente bombeado pelos nossos corações.

No corte de nossa roupa, no peso do alimento,
Nas horas que trabalhamos a matemática está.
Quando vamos ao mercado e fazemos nossa feira
Vamos somando tudo, pra ver se o dinheiro dá.

Fazemos aniversário quando subtraímos
O ano que está em curso do ano que nascemos.
E colocamos no bolo a quantidade de velinhas
De acordo com os anos que nós já temos.

No futebol contamos os pontos que o time tem
E a cada rodada quantos se acrescentarão.
Com os números na cabeça aumenta a ansiedade
Para ver se o nosso time será o grande campeão.

Contamos os dias, semanas, meses e anos
E o tempo vai passando pra nossa felicidade.
Calculamos o tempo pra nossa aposentadoria,
Quando então nós curtiremos a nossa melhor idade.

A matemática está sempre presente em tudo
Na música que cantamos, pelas notas musicais.
Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si tem uma bela simetria,
Que ecoa lindamente em nossas cordas vocais.

Quando olhamos para a lua e também para as estrelas
Ficamos encantados com a perfeita interação
Que existe entre elas no Universo infinito,
Desafiando a ciência pra grande investigação.

A Matemática é uma ciência que interage com as outras
Formando a linda teia da multidisciplinaridade.
E esta ciência está sempre buscando conhecimentos
Para alcançar o progresso de toda a humanidade.


SOBRE O AUTOR

Natural de Jaboatão, Pernambuco. Filho de Manoel e Marina Lima, casado com Alcione Lima e pai de Anália Rebeca e Areli Suzana. Formado em Administração, Teologia e História. Professor na Escola Monsenhor Arruda Câmara (EMAC) e pastor da Igreja Batista, em Sítio Novo, Olinda. O escritor Marinaldo Lima conta com diversos prêmios nacionais em concursos literários de contos e poemas.

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Poema publicado na coletânea do concurso literário A Arte da Palavra 2023.