domingo, 25 de agosto de 2024

 


Eu não me arrependo de ter acreditado mais uma vez que era possível amar alguém, uma música, um projeto ou uma filosofia de vida.
Eu acredito que cada pessoa tem uma capacidade para desenvolver, e muitos, assim como eu, têm feridas que precisam ser curadas. Quando as pessoas se encontram, é pra que evoluam e se curem juntas.
Mas nem sempre o que é certo se faz pela consciência, na maioria das vezes, é a nossa dor que ensina.
Havia um deserto na minha vida quando eu era mais jovem, e literalmente eu andava por ele e via minha sombra solitária: será que um dia eu vou pra algum lugar? Será que um dia eu vou ser uma pessoa sábia?
É triste ver que no final cada pessoa volta pra casa sozinha pensando que o mundo todo é uma poça de mágoas e a vida só pode ser boa com um pouco de anestesia.
Andando assim, como eu faço, talvez você não chegue a lugar nenhum, porque eu ando pra perseguir a minha sombra, eu faço meu caminho pra pensar, e pelos ermos onde moram as ideias, é fácil se perder, e não querer voltar nunca mais. Mas essa é uma tentação que não se deve ceder: é lá que moram os loucos e os amargurados.
O que eu faço é andar, e perseguir a minha sombra como se vai atrás da felicidade, e no caminho, quem sabe o que podemos encontrar?

Graduado em História, o escritor Everton Santos, autor do livro O SOL DOS MALDITOS, é coordenador dos eventos Feira Alternativa e Ensaio de Rua, músico da banda de punk rock  Atari e apresentador do canal, no youtube, Consciência Histórica. Mora em Alvorada, RS.
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Crônica postada, em 20 de dezembro de 2023, pelo autor, em sua página no facebook. 

 

JORNADA CULTURAL #04 EVERTON SANTOS
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Neste podcast, do dia 17 de julho, o artista e escritor Everton Santos, autor de O Sol dos Malditos, foi entrevistado pelo músico Maninho Melo (programa JORNADA CULTURAL, portal Alvoradense).

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

 
PODCAST
PODCAST DO JABÁ - M.I.R
Claudiomir Corrêa, M.I.R, mora em Alvorada, RS, é poeta, compositor, cantor e músico. 
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No dia 13 de agosto, o artista foi entrevistado pelo apresentador Jabá (PODCAST DO JABÁ) em São Paulo.

  

 

Sempre gostei de releituras.
Nelas um novo véu se descortina
sobre a essência captada que deságua 
em outro mar.
Quando alguém lembra de vocês
através do meu ser,
também me releio e adapto-me 
em um cotidiano já não tão festivo,
mas imensamente grato pela convivência
que a física ausência nunca apagará do meu coração.
 
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Poema ADAPTAÇÃO & RELEITURAS do escritor Daniel Machado, Geógrafo da Alma! (Mora em Alvorada, RS).

 


A canção ao fundo diz 
que nada sei.
O Filósofo dizia que sabia nada saber.
E eu em um rompante Quixotesco
afirmo que só sei que a minha incompletude,
seguirá findando em poesia.

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Poema DÚVIDAS E CERTEZAS do escritor Daniel Machado, Geógrafo da Alma! (Mora em Alvorada, RS).

quinta-feira, 8 de agosto de 2024


LIVRO INFANTIL
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Leitura do livro infantil HISTÓRIA DE NATAL, do escritor Sérgio Vieira Brandão,  realizada pelo canal do Youtube CONTO GENIAL
Volver a los diecisiete
Después de vivir un siglo
Es como descifrar signos 
Sin ser sabio competente

Eu poderia começar essa história assim: "A primeira vez que vi Caine West foi em um café. Ela notou que eu estava encarando e deduziu que fosse um flerte. Quando veio falar comigo, coloquei-a na linha, exasperando tudo o que eu pensava sobre ela ser uma mentirosa, traidora e egocêntrica."
Mas essa não é a minha história, e sim a do livro ENGANO IRRESISTÍVEL, da escritora VI KEELAND. Mas então por que eu poderia começar a minha história imitando o romance "Engano irresistível"? Porque são muitas as semelhanças: a começar pelo envolvimento de um professor com uma aluna; as linhas tortas que separam os dois e as coincidências que juntam; a falta de comunicação entre eles  enfim, tudo que se traduz simplesmente pela famosa (e desgastada) "a vida imita a arte".
Eu poderia também começar essa história dizendo que "A última vez que vi Alana foi em um café". Mas é ruim começar uma história pelo final, pela última vez. Vamos começar de novo, então. 
A primeira vez que vi Alana foi em uma sala de aula da Escola Castro Alves, em Alvorada. Ela notou que eu a estava olhando, mas em vez de desviar o olhar (como faria qualquer estudante tímida) ficou me encarando.
Eu era o professor de Matemática, recém chegado naquela escola; Alana, mais uma adolescente a assistir as minhas aulas.
Seria muito demorado explicar a forma como se deu a nossa aproximação. Não tinha a menor chance de acontecer. Mas aconteceu.
Pegando carona nas coincidências, descobrimos que nossos pais eram originários da mesma cidade da fronteira  descoberta que se deu através do meu sotaque.
E foi do jeito mais adolescente que poderia existir que Alana se declarou apaixonada por mim: um bilhete grampeado na prova bimestral de Matemática.
Uma situação típica de escola: a aluna se apaixona pelo professor.
Alana era a menina perfeita para um relacionamento: discreta, bonita, inteligente, afetiva. Perfeita para qualquer adolescente, jamais para um homem de 40 anos, separado do terceiro casamento, com quatro filhos adolescentes para criar.
Mas ela não queria entender a realidade. E assim tivemos longas e cansativas conversas sobre isso, sentados na grama, à beira da Lagoa do Cocão.
Obviamente, que o maior erro tinha sido o meu. Não deveria, em hipótese alguma ter dado abertura. Mas tudo se resolveu quando eu fui chamado para dar aula num cursinho pré-vestibular em Novo Hamburgo. Assim, deixei Alana para trás e fui para uma oportunidade melhor de trabalho.
Acredito que Alana tenha sofrido  amor adolescente é penoso , mas quando a reencontrei, ela estava casada e tinha dois filhos. Tinham se passado dez anos. Eu chegara aos cinquenta e ela recém completara vinte e sete.
O reencontro foi num supermercado. Fui despejando as compras para a moça do caixa passar e só percebi que era Alana quando ela perguntou: "Mais alguma coisa, professor?" Conversamos rapidamente ali e combinamos que eu a esperaria: em meia hora terminaria o expediente dela.
No estacionamento do mercado ela iniciou dizendo que "não era mais a adolescente bobinha" que eu conhecera. Mostrou as fotos dos filhos e do marido. Contou como era feliz.
E eu senti, durante aquela conversa, que agora a situação invertera: eu sentia uma vontade muito forte de abraçá-la; de não me separar; de não passar mais dez anos longe. Ofereci-me para levá-la em casa, mas ela achou que o marido dela não gostaria. Nos despedimos ali, em meio aos carros que buscavam ansiosos uma vaga para estacionar. Daquele dia em diante pensava nela todos os dias. Mas nunca ousei ligar para o número de contato que ela me dera.
O fato de eu ter parentes morando em Alvorada sempre me trazia de volta à cidade. E por fim acabei reencontrando Alana. Mas dessa vez não foi por acaso: ela me procurou pelas redes sociais. Disse que precisava muito falar comigo. Marcamos o encontro como se tivéssemos nos visto há pouco  mas tinham passado mais de dez anos daquela nossa conversa no supermercado. Nos encontramos em um Café perto da Prefeitura.
A cada reencontro, Alana estava mais bonita. Naquele dia ela estava completando quarenta anos, e um fio de cabelo branco brotava bem no meio da cabeça. Mantinha o ar adolescente e o corpo em forma. Parecia um pouco ansiosa. Contou que a filha mais velha fora morar na Irlanda e o filho conseguira trabalho em São Paulo. Ela havia passado no concurso da prefeitura para Secretária de Escola e trabalhava na Escola Antônio de Godoy. Contou que havia se separado. Explicou os motivos da separação. Por fim, disse que nunca deixara de pensar em mim.
Levei aquilo na brincadeira. Disse que os bons professores são inesquecíveis; que ela sempre seria a minha aluna nota dez. Por fim, disse a ela que agora era eu quem estava casado novamente. Que a minha esposa era maravilhosa. Que estávamos pensando em adotar uma criança. E quanto mais eu mentia, mais perfeita ficava aquela história.
Nos despedimos ali mesmo. Ela não quis que eu a levasse em casa e disse: "Acho que a 'maravilhosa' não gostaria".
Ficamos de manter contato. Mas eu sabia que isso não aconteceria. Tenho certeza de que se eu falasse a verdade ela iria querer ficar comigo.
Cuidar de mim até o final. Mas sei que isso não seria o melhor para ela. Eu havia descoberto a minha doença há cerca de um ano, quando fiz os exames demissionais para iniciar a aposentadoria. Estava ciente da longa batalha pela frente: exames, tratamento, mais exames, mais tratamentos. E o prognóstico não era bom.
Não, eu não estava casado. Não tinha ninguém ao meu lado, nem mesmo os meus filhos (cada um seguira a sua vida). A vida seguiu seu curso; foi pisando tão forte que seria impossível voltar atrás.
Acompanhei os passos dela em direção ao ponto de ônibus. Vi quando ela ajeitou o fone de ouvidos. Não sei que tipo de música ela gosta. Qual a comida preferida. Alguma mania. Não sei quase nada dela. Mas agora já não adiantava mesmo. Paguei a conta, mas não saí. Fiquei ali sentado, olhando as pessoas que entravam e saíam do Café. O barulho da avenida atravessava as vidraças junto com uma luz azulada do neon que iluminava o Café. Para tornar o quadro mais deprimente só faltava uma música tocada por um violinista cego.
Forcei a atenção para tentar escutar a música que saía da caixa de som próxima, mas não consegui. O Café ficara cheio, e as vozes e risadas misturadas com os sons da rua não deixavam a música chegar com nitidez aos meus ouvidos. Ou talvez não fosse exatamente por isso, mas porque vinda de algum lugar a voz de Mercedes Sosa martelasse em meus ouvidos: "Voltar aos dezessete depois de viver um século/ É como decifrar sinais sem ser sábio competente/ Voltar a ser de repente tão frágil como um segundo/ Voltar a sentir profundo como um menino diante de Deus/ Isso é o que sinto neste instante fecundo."

Sérgio Vieira Brandão, nascido em Alvorada, RS, é escritor, professor, psicólogo e empresário. Mora em Tramandaí, RS (sergio.escritor@gmail.com).
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Conto publicado em 2021, no livro CONTOS DE ALVORADA, coletânea lançada pelo Clube dos Escritores de Alvorada (editora meia-noite).

sábado, 3 de agosto de 2024

JORNADA CULTURAL COM MANINHO MELO #-02 TAINÃ ROSA
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Neste podcast, do dia 03 de julho, a escritora Tainã Rosa foi entrevistada pelo músico Maninho Melo (programa JORNADA CULTURAL, portal Alvoradense).


DERRAMOU 

Eu é que não sirvo pra ser mulher de pinguço, minha mãe soprava aos quatro ventos. Conversava com as amigas  no portão de casa, enquanto varria as folhas que caíam das árvores acima de nós. Cada dia era uma que chorava no portão, no assoalho, no nosso sofá. A reclamação era sempre a mesma: a pinga. Minha mãe repetia a sua romaria de que não casaria com marido que bebe, a ouvi falar com uma amiga:
 Carmem, meu pai era alcoólatra, agora tu imagina se eu caso com otro e começo a bebê?!
 Tu tem tanta sorte de tá sozinha Amara, lá em casa é um INFERNO!  chorava a outra.
 Não qué dizê que eu não me divirta só por que eu tô sozinha, eu não sô só mãe.
E assim a conversa rumava outras idas: paixões, desafetos, rumores e segredos. Conversas confidenciadas e que me deixavam o alerta: na vida valia tudo, menos a pinga, a cachaça tão comum entre os viventes. Eu nem tinha idade pra namorar e me pegava pensando nesse assunto:  E eu, não vô podê bebê quando crescê? Se todo mundo faz, deve tê algo de bom.
Minha mãe ia ao samba toda a sexta-feira, desfilava, era a vedete da vila, a exibida com samba no pé. Foi ela quem me ensinou a dançar, a minha avó a ela, e assim por diante. Eu adorava as nossas tardes de domingo, dia de descansar e rodopiar juntas pela casa. Era um tal de "O chefe de polícia" e "Toda a menina baiana", na voz de Gilberto Gil. Mal sabíamos nós da profecia daquela primeira música. Tantas vezes mais tarde tivemos a nossa casa invadida pela polícia, pelos banzés causados pelo marido de minha mãe. Cada dia ou noite um problema. Primeiro éramos nós três, as guerreiras da casa: a avó, a mãe e a filha. Depois, no meio do samba, chegou o outro. Gingou a dança no nosso ritmo até mudar a cadência e nos tripudiar. Os pés que chegaram ágeis e com raízes sólidas, oscilavam no entrelaçamento do álcool.
Imbuído no líquido o homem era feito brasa, consumia o que tocava: dinheiro, comida, roupas, gentes... Implodia  cada gesto à sua volta.  Assim, aprendi a roubar dentro de casa, o lugar que era meu refúgio quando pequena se tornou o não-lugar, o espaço temido e de conflitos. Comecei surrupiando moedas de um cinzeiro que ficava na prateleira da sala.  Usava pra comprar pão quando acabava, minha mãe agradecia pelo gesto.  Das moedas fui para as notas: 10, 20, 60, 200 reais. Eu sentia o peso nos bolsos como se cada papel fosse impresso em chumbo. Eu só pilhava aquelas notas pra que não passássemos fome. Um dia arroz com ovo, no outro arroz com tomate, eu previa o cardápio para o dia seguinte: arroz e só. Se não fossem as minhas mãos de pluma a sacar os valores, eles se transformariam em trago assim que cruzassem o portão de casa para a rua. Amara, minha mãe, não podia trabalhar pois cuidava dos dois guris menores. Não eram saudáveis, mais um motivo para que eu afanasse mais, mais, mais e mais notas, precisávamos pagar os remédios.
Em uma de nossas tardes, um vendedor de porta bateu em nossa casa prometendo compartilhar conhecimentos de lugares diferentes do mundo todo, implorei à minha mãe que o deixasse entrar.
Fiquei tão maravilhada com o livro de 1.000 páginas que ela decidiu comprá-lo. O vendedor deixou-a pagar em 10 parcelas de 32 reais! Combinamos que ele viria às terças-feiras, no início da tarde, a garantia de que o homem da casa estaria no horário de trabalho. Eu seguia saqueando quantias para todas as nossas fomes. Eu precisava de outras sabedorias e minha mãe sabia disso. Na penúltima parcela, o homem cambaleante chegou mais cedo em casa e o vendedor se atrasou. Ambos se encontraram e trocaram meio dúzia de palavras. E assim começaram as brigas repletas de açoites, o homem que antes achava perder o dinheiro, agora entendia a presepada e pra abrandar usava a minha mãe. Esse foi um dos dias mais sofridos de minha vida. Nunca havia visto alguém pingando tanto. O sofrimento de minha mãe foi o meu sofrimento.
Depois desse episódio, comíamos uma vez ao dia e supus que teria que devolver o livro pago com os tostões malditos. A escassez dilatou e eu praguejava dia e noite: ai de mim sê igual a ele! Escamotear tornava cada momento mais intragável. Nas entranhas eu suplicava aos meus, que Mandela rompesse das páginas lidas e viesse em meu socorro como fazia com tantos outros. Uma vizinha soube do ocorrido e nos contou de uma ação do governo que auxiliava pessoas em condições como a nossa. Escondidas dos pés vagantes, fizemos o cadastro na prefeitura e, a partir disso, mostrávamos a bran- cura dos dentes. Uma vez na semana comíamos bifes de carne de gado, tudo no maior dos segredos. Passado algum tempo, juntando moedas ofertadas por minha mãe, comprei uma sandália laranja com cinza e verde, a mais linda que vi na vida! E assim continuamos, com a nossa vida paralela de pequenas alegrias.
Às vezes eu fantasiava que vivia numa casa de fadas, remontava o sentimento da época em que só havia as donas da casa. Minha avó me deu uma cama com baú que tinha um armário com fundo falso, eu fechava os olhos e imaginava que era uma passagem secreta, e que do outro lado haveria moedas de ouro, flores silvestres das mais coloridas e animais falantes. Rompia as noites nessa imaginação.
Havia dias que me encontrava cansada já pelas quatro da tarde, pois mal havia dormido na noite anterior sonhando com todas as riquezas da vida. Chamava o espaço do quarto reservado a mim de "Refúgio Feliz", um lugar só meu, de beleza e felicidade.
Minha mãe também encontrou o seu espaço de contentamento dentro de seu pensamento: estava decidida a voltar a sambar na rua. Comprou um tecido e as mulheres da casa, como dizia ela, se colocaram a costurar. Cosemos dois vestidos iguais: um para mim e outro para ela - que iria ao samba de final de semana. Queria tudo o que era dela e que com o tempo esqueceu de reivindicar! Bradejava. Alinhamos tecidos e fios durante duas semanas, entre as tarefas da casa e o cuidado com os filhos-irmãos. Minha avó, na sua tenra idade e tempo outro, bordou as mangas com adinkras de boa sorte. Um arranjo com pedrinhas douradas do tamanho de grãos de areia. Ao revoar soavam como gotas de orvalho caindo em folhas pela manhã. A cada ponto a avó contava uma história das mulheres que vieram antes dela e que lhe ensinaram cada movimento. Eu me enredava naqueles relatos e só saía de perto quando ela cansasse das agulhas.
A noite do samba se fez. Eu escutava a música do pátio de casa e volteava com meus irmãos e minha avó. Que farra! O homem que se dizia dono da casa estava bebendo na rua e não sabia o que se passava dentro ou fora do nosso teto, melhor assim. Além de bater perna, minha mãe estava decidida a trabalhar. Já estava tudo arranjado: eu cuidaria de meus irmãos com a orientação de minha avó e minha mãe compraria comida e roupas novas, e ainda separaria um dinheiro para emergências. As ameaças de morte aconteceram quando quis ajudá-la nessa empreitada, na minha rotina ácida fiz folhas de cheques sumirem de um lado e reaparecerem de outro. Uma delas foi achada pelas pernas cambaleantes. Tudo por causa da pinga! Bradava minha mãe pela casa. Junto à primeira pingávamos nós, em irmandade com as que serpenteiam pelos pampas. Em uma das sextas-feiras de horror, foi a última gota, minha mãe e aquele homem gritavam:
 Eu preciso de dinheiro pras crianças! — vociferava ela. 
 Eu não vou mais botar UM ÚNICO REAL para dentrodesta casa! — respondia o covarde levantando a mão.
Como era irritante ouvir todos os Ss e Rs na boca daquele patife. Era um crápula com estudo, ex-aluno de um internato alemão. Suas palavras gozavam da nossa cara pelo seu poder de nos dominar e pela nossa falta de instrução à época. E pingou. Levei os pequenos para o quarto. Eles choravam. Compulsivamente. Ouviu- se um som de trovão. O último estouro em meio ao caos. Um arquejo de rasgar o vento. E tudo cessou.
Um silêncio ensurdecedor varreu a casa e seguido dele minha mãe rompeu em lágrimas e pranto. Eu estava com um mocho na mão. Minha mãe não me questionou ou revoltou, apenas tirou-o de minhas mãos e o colocou numa bombona de lixo. Eu me tranquilizei. Amara, batizada por minha avó com a palavra sagrada, me deu que por meio de nossos ancestrais uma nova chance, a misericórdia carregava no nome. O silêncio de minha mãe significava um mundo inteiro. A prova de que eu participava de um grupo maior, um pacto entre as nossas. O silêncio de minha mãe foi o meu silêncio: eu não tinha visto, feito, ouvido ou lembrava de nada do que aconteceu naquela noite. Parte da memória também é esquecer. A ambulância chegou rapidamente, chamada pelos vizinhos, e levou o homem sem fazer perguntas. O velamos até o hospital, sempre ao seu lado. O médico falou que ele teve um derrame. Sem verbalizar, ruminei que foi a pinga que o corroeu. De dentro para fora. Derramou.

A escritora Tainã Rosa mora em Alvorada, RS, é professora, contadora de histórias, artista visual e produtora cultural. Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica. Graduada em Pedagogia e Mestra em Letras, Estudos Literários, pela UFRGS. Teve um período de estudos na Universidade do Porto, Portugal. Pesquisadora de literaturas pós-coloniais, artes pós-coloniais, relações etnico-raciais e educação interdisciplinar. Doutoranda, em Letras e Culturas Ibéricas e Latino-americanas, na Universidade do Texas, Austin, EUA. (tainaproducaocultural@gmail.com).
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Conto publicado em 2021, no livro CONTOS DE ALVORADA, coletânea lançada pelo Clube dos Escritores de Alvorada (editora meia-noite). 

quinta-feira, 1 de agosto de 2024


JORNADA CULTURAL EP#06 FABIANO VAZ

O escritor Fabiano Soria Vaz mora em Alvorada, RS, é professor e pesquisador. Escreveu artigos para o livro RAÍZES DE ALVORADA e o site A Trincheira: a História em debate em Alvorada. Autor de O PIONEIRO DO PASSO DO FEIJÓ, conto da coletânea CONTOS DE ALVORADA, do Clube dos Escritores de Alvorada (dizedoria@gmail.com).
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Neste podcast, do dia 31 de julho, o autor foi entrevistado pelo músico Maninho Melo (programa JORNADA CULTURAL, portal Alvoradense).

O dia começou cinza, com as nuvens carregadas anunciando a chegada da chuva. O som das gotas batendo suavemente no telhado trouxe uma sensação de aconchego e tranquilidade. Era como se a natureza estivesse tecendo reclamações que os humanos não estavam dispostos a ouvir. Enquanto as cidades acordavam aos poucos, as ruas eram tomadas por guarda-chuvas coloridos e solitários passantes que caminhavam apressados para escapar da umidade.
Mas alguns, como eu, pararam por um momento para apreciar a dança das gotas caindo, criando padrões hipnóticos nas poças de água. A chuva trouxe uma calmaria diferente, um convite para desacelerar e se permitir contemplar a vida de uma forma mais poética. Nos bares, o cheiro de café recém-passado se mesclava com o aroma da terra molhada, trazendo uma sensação de nostalgia.
À tarde a chuva se intensificou, transformando o ritmo acelerado da cidade em um suave murmúrio de grossas gotas batendo no chão e criando poças intensas. Os carros agora passavam lentamente pelas ruas, criando ondas de água que refletiam as luzes dos postes, em um espetáculo visual digno de contemplação.
Os pássaros sentiram a tensão e cantaram de uma forma diferente, triste, agitados procuraram abrigo nos galhos mais altos das árvores. O canto se misturou ao som da chuva e os humanos não pararam para ouvir a melodia da natureza.
Enquanto isso nas casas e apartamentos, famílias reunidas em torno de uma xícara de chá ou café quente, ouviam incrédulos o que acontecia, cidades inteiras eram inundadas pela mesma chuva que antes proporcionava aconchego e contemplação.
A noite chega silenciosa com a chuva ainda caindo. Os carros permaneceram nas ruas, as casas que eram lares seguros e aconchegantes viraram lagos. Os transeuntes eram agora pessoas que fugiam da fúria da água. Nos bares não havia café recém-passado, mas lama e água. A chuva intensa tomou ruas, avenidas, carros, não fez distinção entre ricos e pobres. Deixando-os em pé de igualdade e sofrimento.
Cidades inteiras alagadas, destruídas, um incalculável prejuízo e muita tristeza. A chuva que começou poética e suave, causou a maior destruição já vista em um estado brasileiro. Mas em tudo isso o povo gaúcho conheceu a solidariedade dos irmãos brasileiros de Norte ao Sul, e até de países estrangeiros.
Levará tempo até que possamos novamente enxergar poesia em um dia de chuva. Aos poucos entendemos que apenas usamos o espaço que é das águas, e quando ela chega para retomar seu espaço por alguns dias, nós humanos devemos sair do caminho, sobreviver, e reconstruir.

A escritora Ironi Jaeger é coordenadora do Festival de Literatura e Artes Literárias (FLAL). Mora em Alvorada, RS.
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Crônica postada, em 24 de junho de 2024, pela autora, em sua página no facebook. 

segunda-feira, 29 de julho de 2024

O ANIMAL

A mãe do menino não deixava ele ter um animal de estimação. O menino queria muito.
 Mãe, hoje tem uma loja de animais aberta. Amanhã a loja estará fechada.
A mãe dele nem respondeu.
O menino ficou triste.
A mãe viu o menino e decidiu: nada de mal ele ter um animal de estimação.
Ela trouxe para ele uma gaiola com um canário, e o menino botou o nome de Bicudo. E depois o menino ficou com pena e soltou o pássaro.
A mãe do menino ficou muito brava com ele.
O menino chorou. Acho que ele queria um gatinho.
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Conto O ANIMAL, do escritor Thommy Porto, na época com sete anos de idade, publicado em 2002 no livro Alvorecendo: escritores e poetas de Alvorada (RS), coletânea de contos, crônicas e poemas organizada pelo Clube dos Escritores de Alvorada.

domingo, 28 de julho de 2024

     

FIOS DE PRATA

Por entre teus cabelos
Perdiam-se fios de prata 
Temente de tua dureza 
Virtuosa Lua me diz
Moderai teu amor

Saio em fuga
Pela noite afora
Sinto o frescor de
Teu colo seguir-me
E tenho novamente 
A formosa Lua
Que dança para mim 
E mulher se revela.

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Poema FIOS DE PRATA, da escritora Vanessa Millis, publicado em 2002 no livro Primavera Poética, coletânea de poemas organizada pelo Clube dos Escritores de Alvorada.


O PIONEIRO DO PASSO DO FEIJÓ

Quando o velho Manoel cruzou o arroio pela última vez, no inverno de 1835, aquele curso d'água já levava seu nome. O cavalo tobiano conhecia o ritual: chegou sem pressa e parou para beber das águas geladas e cristalinas, enquanto o velho contemplava seus campos. Desta vez, porém, Manoel estendeu a vista para o leito do Arroio Feijó, que avançava devagar e sem pausas. "Como o tempo", pensou.
Manoel de Souza Feijó fora pioneiro naquelas terras. Soldado nascido em 1753 na ilha açoriana de São Miguel, com 27 anos apeou naquele ponto dos campos de Viamão, entre o Porto dos Casais e a Aldeia dos Anjos. Dedicou seus melhores anos a desbravar cada palmo, desde que sua majestade lhe concedeu a quadra de terras, em 1780. Veio para o Brasil encorajado pelo ciclo do ouro, mas suas incumbências o levaram para bem longe das minas. No Continente de Rio Grande de São Pedro, a coroa portuguesa havia consolidado a estratégia de povoamento e, com a invasão castelhana, em 1763, acelerou a distribuição de terras a militares, como forma de garantir a posse e a defesa dos territórios contra uma nova invasão.
Voltou a montar, ajudado pelo neto Francisco Ramires. Avançou pela estrada até a forquilha, mas não desceu em direção à sede. Seguiu à direita, em direção aos pés de cocão, por meia légua. Queria ver a prainha, como chamava a lagoa na subida da coxilha. A paisagem lhe tocava fundo na alma. Ali ensinara os filhos a nadar, gostava de levar os netos nos dias de verão.
Mas ainda lhe doía a saudade das tardinhas ali com Inácia Felícia, sua primeira esposa. Foram quarenta anos divididos com ela antes de enviuvar, em 1822.
Chegaram em casa já com a lua nos calcanhares. Claudina Maria os recebeu no pátio, advertindo Manoel com falsa indignação. Sabia que ele estava muito doente, mas sabia também que aos 82 anos não se põe cabresto em ninguém. O pequeno Francisco correu pra abraçar o pai. Era o último dos dezoito filhos.
A doença evoluiu rápido. Nas semanas seguintes, Manoel não pôde sair da estância e, em meados de agosto, já não saía da cama. Recebeu muitas visitas de familiares e vizinhos. O Pe Bartolomeu, pároco da Igreja Matriz de Viamão, onde casou e batizou os filhos, lhe concedeu distinção ao celebrar missa na sede da fazenda.
Uma tarde, recebeu Angelo Inácio de Barcelos e a esposa, Alexandrina. Estavam felizes, esperando o segundo filho. Claudina perguntou pelos nomes. "Se for menino, terá o nome do avô paterno, Diogo Inácio. Se for menina, será Ana Inácia, como minha mãe" disse Alexandrina. Embora as terras para lá das figueiras pertencessem ao falecido Diogo Inácio de Barcelos, este pouco vinha àqueles lados. Aparentemente, Angelo havia herdado aquele pedaço, mas tampouco lhe dava uso.
Após o café, Angelo sentou a sós com o velho. Queria se aconselhar a respeito de um assunto. Estava preocupado com o clima político na província. Os estancieiros, principalmente do sul, estavam descontentes. Nos últimos meses, houve reuniões na casa do Gomes Jardim, na freguesia das Pedras Brancas. Queria saber se os Souza Feijó haviam sido convidados e se pretendiam tomar partido.
Mas Manoel também estava inseguro sobre o que fazer. Sua condição mudara desde 1822. Após a independência, Dom Pedro havia tratado de garantir as concessões aos portugueses que viviam no Brasil. Mas Manoel sabia que, aos olhos do povo, seguia sendo um estrangeiro nessas terras.
Para piorar, o imperador abdicara ao trono em 1831. Seria prudente confrontar o império? Seu filho Desidério lutara na Guerra Cisplatina, pelo qual atingiu o posto de alferes do exército imperial. Com certeza sofreria sanções. Além disso, os oposicionistas representavam movimentos bastante diversos e mesmo antagônicos. Haviam imperialistas, republicanos, separatistas, abolicionistas, liberais e libertários. Essas alianças se sustentariam? Quais ideais prevaleceriam? Por outro lado, apesar de os rebeldes não terem apoio significativo em Porto Alegre, estavam geograficamente muito mais próximos. Se fossem vitoriosos, as consequências poderiam pesar sobre os indiferentes. Manoel rezava para que o entrevero se resolvesse no campo da política, e incentivou Angelo a fazer o mesmo.
Dias depois, pediu que lhe assentassem na varanda. Assistiu satisfeito ao rodeio improvisado pelos meninos Joaquim e Antônio, de seu casamento com Ana Maria. Perto dele, o pequeno Francisco retouçava com os cachorros. Claudina sentou-se ao seu lado com o mate e ouviu instruções a respeito do inventário. O velho não quis almoçar. Puxou a coberta. O vento fresco de início de setembro contrastava com o Sol, que amornava tudo que tocava. As árvores balançavam ritmadas e dos galhos se ouvia os pássaros saudando o fim do inverno. A sensação lhe aconchegou o coração. Teve sono. Adormeceu, sereno, e não tornou a abrir os olhos.
Duas semanas depois, grupos armados tomaram Porto Alegre, iniciando uma guerra que duraria dez anos.


SOBRE O AUTOR

Fabiano Soria Vaz é professor e pesquisador com artigos publicados no livro Raízes de Alvorada e no site A Trincheira - A História em debate em Alvorada. Mora em Alvorada, RS (dizedoria@gmail.com).

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Conto publicado em 2021, no livro CONTOS DE ALVORADA, coletânea lançada pelo Clube dos Escritores de Alvorada (editora meia-noite).

*Obra de ficção baseada em personagens reais e fatos históricos.