segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

ALVORADA E A GERAÇÃO PERDIDA

Anteriormente eu havia explanado em uma introdução das minhas crônicas da juventude sobre a concepção cosmológica aristotélica. Sendo o universo uma máquina que funciona de forma integrada e harmônica todos nós nasceriamos com posições já definidas para ocupar nessa ordem. Quanto mais conseguimos nos ajustar a essa condição, mais manifestamos a “eudaimonia”, termo que Aristóteles cunhou para explicar o que podemos entender por realização pessoal.
Desta maneira, quando um artista é obrigado a em algum tempo de sua vida a dedicar-se a atividades diferentes da sua, acaba manifestando a tristeza, pois esta fora de seu lugar no cosmos. Mas quando exerce sua expressão artística e de sua interação com o público surge a alegria, podemos dizer que este ser humano manifesta um sintoma ainda com mais extensão: a felicidade.
Cada um de nós viria com um dom para o mundo, uma virtude especifica e particular que contribui para o todo universal, e o fogo disto em nossas mãos é uma batalha por glória e afirmação, onde buscamos a todo tempo por sentimentos confusos como prazer e satisfação. O que pensei em trazer em minhas histórias é um pouco do dom de cada um que passou por mim, que com seu brilho contribuiu para o cosmos de maneira particular e única.
A era moderna viria a provar que universo não é cosmológico, mas a relação de bons afetos com o mundo ainda é feita por uma leitura de integração com a natureza, mesmo que seja em seus desdobramentos caóticos. Logo, escrevo com referencias poéticas, sobre as loucuras que fizemos em tempo e lugar desolados, mas nós enxergamos estrelas no chão da cidade.
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No inicio dos anos 2000, época que todas as minhas aventuras começam, havia uma pequena casa de dois andares no alto do morro nos limites da cidade de Alvorada. Era um lugar abandonado de propriedade da família de um amigo. Assim como a praça da 48, a “casinha” é um cenário constante em histórias do passado. Lá nos encontrávamos à luz de velas, bebíamos e cheirávamos solvente, não haviam drogas pesadas. Na verdade eram realizados verdadeiros sabás, pessoas de diferentes pontos da cidade se dirigiam até lá, entre punks de Porto Alegre, hipies e desajustados como eu.
O movimento underground da época existia como uma decadente lembrança dos anos 80 e 90, e nós refletíamos ainda ecos dessa época. Entretanto tudo o que foi feito tinha referencia a depressão da cidade: desemprego, pobreza, exclusão social, etc. Assim em nossos encontros além da loucura frenética havia o pano de fundo de uma sociedade falida onde a realidade teve que ser criada o tempo todo. Uma casa abandonada teve que transforma-se em nosso santuário, e em noites inesquecíveis contamos uns para os outros sobre nossas vidas.
A casinha ficava no alto de um morro, quem olhar de longe em algum ponto de Alvorada para o leste, pode notar até hoje uma gigante caixa de água da empresa estatal CORSAN. Era exatamente nesse ponto. Nos dirigíamos pra lá em caravanas a pé, entre cinco a oito pessoas. Ao chegar no lugar pela primeira vez tive a impressão de que era uma bobagem estar em uma casa abandonada sem luz elétrica. Algumas pessoas estavam sentadas bebendo, havia uma cama velha com um coração desenhado próximo a ela, seria a “cama do amor”. Uma garota me pediu cigarros, eu como sempre não tinha. Um amigo gritou algo do andar de cima, a noite estava começando.
La me contaram coisas intrigantes sobre o antigo dono da casa que seria um pesquisador acusado de loucura, e também sobre magia Wicca, meditação e transferência de pensamento, as histórias sobre as lendas do rock sempre apareciam com uma mística que hoje não temos na época da internet. A quebra do paradigma era uma constante em nosso meio, e a música era uma extensão de um estilo de vida.
A busca do prazer a todo o custo não raras vezes deixa um vazio maior dom que podemos suportar, haviam histórias de depressão, grandes paixões, suicídio, HIV, morte e sumiços.
Para entrar na casinha após uma longa caminhada bastava ultrapassar uma cerca quebrada de madeira.
Certa vez decidimos fazer uma sopa. Arranjamos uma grande panela, legumes, um pouco ou quase nada de carne. Nesta noite olhando o fogo reparei que minha amiga “Maninha” me parecia uma feiticeira. Minha alucinação era uma viagem que eu realmente conseguia refletir dentro. Um outro amigo, chamado “Urso”, em virtude de seu tamanho, se postou a minha frente, reparou que eu estava deslumbrado com tudo e totalmente sugestionável. Ele pegou algo em sua mão e ateou fogo, com uma a pequena chama entre os dedos, engoliu o objeto como se fosse uma pipoca flamejante. Eu olhei assustado, e me mostrou uma tatuagem que tinha em seu braço, era um circulo com algo dentro e algo fora. Finalmente com ar solene de um xamã se pronunciou:
 Isto representa o lugar de onde eu vim, e este risco fora do circulo é minha queda do céu para o mundo.
Naquela noite, entendi que éramos como anjos caídos. Eu não conseguia dizer muita coisa naquele tempo, minha posição era de aprendizado. Em tempos assim aprendemos tudo que se precisa para amar o mundo, o resto a ciência e a técnica ensinam. A casinha esta na minha lembrança como o lugar que a liberdade da juventude só podia levar a espíritos como foram os nossos. E em algum lugar ainda queimamos na fogueira daquelas noites...


Graduado em História, o escritor Everton Santos, autor do livro O SOL DOS MALDITOS, é coordenador dos eventos Feira Alternativa e Ensaio de Rua, músico da banda de punk rock Atari e apresentador do canal, no youtube, Consciência Histórica. Mora em Alvorada, RS.
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Crônica postada, em 2 de fevereiro de 2018, pelo autor, em sua página no facebook. 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

REALIDADE


Vou contar uma história, 
a mais pura realidade. 
Cancelaram a feira do livro, 
em nossa linda Cidade. 

Queremos a nossa cultura, 
para seguir a tradição. 
Precisamos de ajuda, 
para a nova geração. 

Em oito de Dezembro, 
fizemos a nossa apresentação. 
Cada um fez a sua parte, 
estendeu a sua mão. 

Na cidade de Alvorada, 
existem muitas Celebridades. 
queremos conquistar, 
a nossa felicidade. 

Continuo seguindo em frente, 
por que não pretendo parar. 
Ainda tenho a esperança, 
do meu sonho realizar. 

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Poema REALIDADE, da escritora Maria Rosa. Natural de Santo Antonio da Patrulha, a autora, reside em Alvorada, RS. Participou das coletâneas Livro do Trabalhador; Pérolas Ocultas; Somos Alvorada e; Raízes. Atualmente, está escrevendo um livro de poesia. 
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Homenagem da autora para a I Feira Literária Independente em Alvoradaocorrida em 08 de dezembro de 2024.

 

Então é segunda…
Segunda-feira é, para mim, o dia sagrado de escrever. Hoje, no entanto, as palavras parecem ter se escondido, como crianças tímidas em uma festinha. Meu corpo carrega o peso de um cansaço que não se justifica, e o meu coração, esse companheiro tão fiel, se arrasta pela tristeza, enquanto minha alma, inquieta, busca um pouco de paz em meio ao turbilhão.
Está chegando o Natal, e com ele, um desejo que se renova. Ah, os natais! Lembro-me de como, em tempos passados, eu esperava ansiosamente por um milagre que nunca chegou. Era como aquela criança que deixa o sapatinho na janela, cheia de esperança e sonhos adornados com laços coloridos. Mas, por mais que eu tentasse ser uma boa menina, esforçando-me até o limite, o presente do Papai Noel nunca veio. A vida, cruel na sua simplicidade, me ensinou a duras penas que nem toda espera é recompensada.
Então, aos poucos, fui desistindo. O brilho das luzes, o encantamento dos enfeites, tudo isso se tornava um pano de fundo para a minha melancolia. A existência do Natal parecia um paradoxo: festivo e triste ao mesmo tempo. Eu sorria, é claro; afinal, era Natal, e não se pode permitir que a tristeza manche a imagem perfeita da celebração. Mas, por dentro, meu coração chorava um choro silencioso, repleto de não-ditos, de promessas que nunca saíram do papel e de sonhos que deixaram de existir antes mesmo de serem vividos.
As conversas se tornaram ecos de vozes e risadas, misturadas a lembranças de tudo o que não aconteceu. Riso por fora, vazio por dentro. Às vezes me pergunto se um dia ser capaz de acreditar novamente. A esperança, por mais frágil que seja, deveria ser acolhida como uma velha amiga, mas ela se esconde, desconfiada, e eu hesito em chamá-la de volta.
Quem sabe, em um futuro distante, eu possa revisitar essa fé perdida? Mas, para mim, o Natal já parece tarde demais. E assim, no compasso lento de uma segunda-feira qualquer, escrevo, não com pressa, mas com a calma de quem aprendeu a viver entre as palavras e os silêncios. Afinal, a vida continua, e mesmo sem presentes, a história ainda se desenrola. O desejo, embora tardio, persiste, e é esse fio invisível que nos une ao que ainda pode vir a ser.

A escritora Ironi Jaeger é coordenadora do Festival de Literatura e Artes Literárias (FLAL). Mora em Alvorada, RS.
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Crônica postada, em 23 de dezembro de 2024, na página Liga dos 7, no facebook. 

 

O SEGREDO DAS TRILHAS

 

Ah! Secretas trilhas sonoras
que embalam minha incompletude
alimentando-se de receios 
sem guaridas em meus anseios.
Ser poeta é se encantar com pássaros, abelhas e borboletas
mesmo diante do jardim prestes a ser destruído.
É se embriagar com alegrias, 
mesmo com dias contidos
pela inépcia do homem
que (Des)conjuga o verbo AMAR.

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Daniel Machado, Geógrafo da Alma!, é poeta, contista e cronista social. Escreve crônicas sociais para o blogue Humanidades em DebateReside em Alvorada, RS. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

 

RECORTE

Passa das dez da manhã e, naquele horário, o fluxo de automóveis é constante, barulhento. Olho para o prédio residencial à minha frente, um daqueles imóveis antigos, com bem mais de meio século, construído em uma época em que o trânsito não era um problema, em que carros eram artigos de luxo. As sacadas, em sua maioria, têm vasos de plantas, flores e outros adereços. Meus olhos fitam uma sacada em especial, vazia, sem nada que a destaque das demais. Confiro o molho de chaves, escolho a maior, aquela que abre o portão de entrada. O barulho do trânsito segue intenso enquanto entro no prédio em silêncio.
Não há ninguém na portaria, tampouco encontro algum morador no caminho até o elevador. Pressiono o botão de número doze, pouco depois estou em frente à porta do apartamento. Nova conferência nas chaves, escolho a vermelha. Ouço um clique suave ao abrir a porta, mas não entro de imediato. Sinto o cheiro fraco de perfume, quase tudo lá dentro está coberto pelas sombras, alguns  poucos — locais recebem fachos de luz da rua, pelas frestas das cortinas. Avanço, não sem antes pedir em voz baixa, com licença. 
É um apartamento bonito, simples e prático, o hall de entrada tem uma mesinha com uma pequena bandeja, que é onde deixo as chaves, dando-me conta de que aquilo já deve ter ocorrido inúmeras vezes. Na parede do hall há um espelho redondo, com entalhes em madeira muito bem trabalhados. Ao lado da mesinha, um par de pantufas brancas pequenas descansam sobre um tapete. Deixo meus sapatos ao lado das pantufas, entro na sala com os pés descalços. 
Estar aqui, nesse lugar, é como entrar em um reino íntimo ao qual não fui convidado, sei que sou um intruso aqui. Na sala pequena, um sofá de armação de madeira, almofadas com estampas florais estão amarradas por fitas em seus lastros. Outro tapete jaz em frente ao móvel. Depois, uma televisão em um rack, o controle remoto jogado sobre o sofá. Abro as cortinas, o sol da manhã invade o lugar, talvez a luz seja mais bem-vinda do que eu. Quero ir embora, mas preciso ficar. Retiro a mochila que trago em minhas costas, pego um notebook, faço anotações, olho novamente para o cômodo, vejo um porta-retratos ao lado da tevê. É uma imagem em branco e preto e atrás do porta-retrato, escrito à caneta, uma data, um local. Búzios, 2018. Não faz tanto tempo, os sorrisos aqui, nessa foto, duram para sempre. 
Fico parado na sala por um tempo, tentando ver o que acontecia aqui, é tudo tão tranquilo, tão calmo. Não há vida aqui, eu lembro, só a memória. Levanto-me, vou à cozinha, dentro da pia de alumínio há uma xícara não lavada junto de uma colher. Depois eu lavo, é o que aquilo me diz. Na geladeira, poucas coisas, verduras escurecidas pelo tempo, potes com alimentos congelados, a comida da semana. Mais à vista, uma fatia de torta de banoffe pela metade. A cozinha e a área de serviços são contíguas, vejo a máquina de lavar junto de um cesto cheio de roupas. Haveria tempo, imagino. Quando voltar, eu lavo. Vou esperar ter mais roupas, lavar tudo de uma vez apenas. Ou, talvez, não quero fazer isso hoje. Talvez seja essa a resposta. 
Ainda há mais a ser visto.
O banheiro é pequeno, tem um box de vidro esverdeado. Dentro do box, vários xampus e condicionadores, um sabonete. No regulador de água, uma calcinha repousa. Quase peço desculpas. Me volto para a pia ao lado do vaso, acima dela, um armário com espelho que inspeciono sem mais olhar para o box. Tantos remédios. Ansiolíticos, antidepressivos, remédios para dores de vários tipos. É tudo tão simples, tão desconfortável. 
Penso em encerrar a visita, sair dali, daquele apartamento, daquele prédio. Daquele mundo inteiro em poucos metros quadrados. Mesmo pensando em tudo isso, vou até o quarto, com um roupeiro pequeno, uma cama box com lençóis desarrumados, todos florais, o lençol inferior, com elástico, também solto sobre a cama. Tudo mais fora do quarto, tão organizado. Sobre a cômoda, ao lado da cama, um rádio relógio quebrado. Na parede acima do box, há um quadro com uma fotografia ampliada. O vidro que a recobria está rachado, alguns cacos de vidro estão caídos sobre os lençóis. Vejo o casal que havia na foto, com rasgos aparentes, destruindo um momento bonito preso no passado. Agora, nesse instante, não há um “momento” só rastros de um tempo recente, muito diferente daquela imagem. 
Quando aconteceu, naquele dia, eram seis da manhã, o barulho do trânsito não era tão intenso, não havia tantas pessoas na rua. A sacada, o último lugar para onde vou, é estéril, destoante de todas as outras sacadas, tão verdejantes naquele ambiente urbano e sujo de fuligem. Há duas cadeiras, uma bem rente à parede e outra, como um degrau, muito perto do parapeito. Não há mais detalhes, apenas a cadeira, o que sua posição sugere. Não sei o que houve naquela noite, sei que ela se revolveu na cama. Por muitas horas antes de amanhecer. Sei que se decidiu de súbito. 
Não fico muito mais tempo. Apago as luzes, fecho a porta. 
De volta à portaria, uma senhora me cumprimenta, pergunta quem sou, nunca me viu no prédio. Mostro meu documento enquanto explico de forma sucinta, me preparando para deixar o local. A mulher comenta. 
 Tão nova, não é?
 A senhora à conhecia?
 Não, ela era esquisita, nunca quis assunto com ela.
 Talvez tenha sido isso então.   Comento sem pensar.
 Perdão?
 Não foi nada.
Ouço o barulho do trânsito, observo uma última vez aquele prédio e suas sacadas. Em meio ao caos urbano, aquele foi só mais um dia comum, ordinário. Aquele recorte passou despercebido. Na memória dos que a viram, restou apenas o impacto ao atingir o solo.

Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plagg: o Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  
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Conto postado, em 22 de julho de 2024, pelo autor, em sua página no facebook. 

 

MOVIMENTO DE TRANSFORMAÇÃO 


Na retrospectiva de anos, meses e dias,
Abraçados com lealdade, assim é a educação popular.
Movimentos que agitam as massas,
Emancipando o sujeito em busca de seus direitos.
 
Esses sujeitos, esquecidos, tornam-se oprimidos,
Por atos extremistas e capitalistas,
Que alimentam o fascismo predominante.
Como nos calar diante de tanta injustiça?
Quando a mãe vulnerável sofre,
Em meio à pobreza, ao sem-teto, à falta de alimento,
Às oportunidades que nunca chegam.
 
Os votos, antes secretos, hoje são moeda de troca,
Os problemas estão em cada esquina,
A enchente de 2024 inundou nossos corações de tristeza,
Mas o diálogo e a escuta devem ser eficazes e afetivos.
 
Movimentos de transformação,
É nossa missão: equidade, respeito,
em Deus, amorosidade, compaixão.
 
Gratidão a cada educador,
Que se doa a essa missão,
Acreditando na metodologia de Paulo Freire,
E capacitando os cidadãos para a mudança.  

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Poema MOVIMENTO DE TRANSFORMAÇÃO, da escritora Simone Soares. Educadora popular e embaixadora da Editora Plena Voz, a autora reside em Alvorada, RS, e, desde 2024, organiza, junto com artistas, apoiadores e escritores, a Feira Literária Independente em Alvorada.
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N.A. A poesia tenta trazer à tona a força do movimento transformador, a crítica social e o papel vital dos educadores na luta pela emancipação e pela justiça.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

ANIVERSÁRIO GÓTICO

desde sempre um poema sinistro de Edgar Alan Poe sendo recitado dentro da minha cabeça, arrepiando-me os cabelos nas madrugadas, quando os gatos murmuram pra lua em cima dos telhados das casas.
Eu nasci no dia das bruxas. Nessa ocasião os corvos do milharal levantaram voou, e o cemitério da colina soprou mais que nunca os ventos uivantes que vem do norte.
A escuridão da meia noite é a minha casa, onde há histórias de terror narradas por uma voz suave que conta sobre as terras oníricas do reino de Kadah e sobre as ruínas da Cidade sem Nome.
No dia em que eu nasci todas as flores morreram, e uma poesia de Augusto dos Anjos esteve nos lábios tristes de alguém que já partiu.
Então eu surgi para contemplar os terrores abissais, na loucura de um pássaro negro que pousou na minha casa e me disse: nunca mais!
E como eu poderia resistir a horrores tais? Eu, um simples homem curvado andando na linha do horizonte deixando tudo para trás!
Desde o dia que eu nasci eu não tive paz, pois existe um hóspede indesejável e perspicaz, que insiste em me dizer do alto da minha casa: os dias que viveste, nunca mais.


Graduado em História, o escritor Everton Santos, autor do livro O SOL DOS MALDITOS, é coordenador dos eventos Feira Alternativa e Ensaio de Rua, músico da banda de punk rock Atari e apresentador do canal, no youtube, Consciência Histórica. Mora em Alvorada, RS.
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Crônica postada, em 26 de outubro de 2022, pelo autor, em sua página no facebook. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

 

O LOBISOMEM DO LEPROSÁRIO (Parte I)

Buenas, tchê! A seguir, vou te contar uma história cabulosa, daquelas de arrepiar as crinas do matungo e cair os butiás do bolso. Pensa numa resenha jamais vista. Estás preparado, vivente? Então, pega tua ritalina, cuia, bomba e erva, e te aprochegue pra nossa roda de chimarrão. Pois, a partir de agora, você vai ficar hipnotizado com cada história mais macanuda que a outra, narradas em primeira mão, por um Uber neurodivergente, daqueles que saem da casinha e jogam a chave fora. Tchê, mas que barbaridade! Nem incorporou e já quer charuto? Não dança nada e quer luz negra? E anda solto? Recordar é viver! Uma salva de palmas ao saudoso professor Antônio, o qual, durante anos, ensinou informática no curso Vigor, simplesmente o melhor curso preparatório para concursos públicos do RS.
Vamos lá! Era uma vez… Era uma vez na capital da solidariedade. Enquanto subia a Frederico Dihl e passava em frente à nossa lagoa do cocão, via uma multidão de colegas chegando e saindo do mercado mais popular de Alvorada.
Ao descer a Graça Aranha e passar de fininho ao lado de uma baita figueira, que fica exatamente no meio da rua, lembrei de um conto intitulado “Os três elementos”, o qual, faz parte do livro “Histórias da mão esquerda”, de autoria de J.R.Pôrto.
Nesse interregno, pensava com meus botões nas histórias que ouço enquanto dirijo por aplicativos e imaginava que "pérola" viria dos lábios do próximo passageiro.
A esta altura do campeonato, eu pensava que havia ouvido de tudo, que já tinha um portfólio sólido de histórias dignas de fazer parte de um livro que daria inveja até no Pinóquio, Tio Chico, Guina, pastor Jotinha, Mike Baguncinha ou Pablo Marçal.
No entanto, o que eu estava prestes a ouvir, seria diferente de tudo o que tinha já escutado em minha jornada de Uber Alvoradense metido a repórter.
Naquela insólita noite de Quinta-feira, ao incentivar o Carlos a me contar uma história bagual, quase me arrependi. Pois, o quadro mental da mesma, ficou flutuando como uma "persona non grata" em minha mente nada ortodoxa, fora da curva ou neurodivergente. Fazer o quê, se Deus me fez assim? Cada um luta com as armas que tem! Amém! Vamo dá-lhe!
Sem mais delongas, vou tentar te contar de um modo bem tranquilo, para que você não tenha pesadelos a noite, sonhando com "a coisa" que aquele menino viu no leprosário.
–– Você parece ser um homem de mente aberta. Por isso, vou te contar um segredo, uma experiência que passei há mais de trinta anos, na praia de Itapuã. Inclusive, você é a primeira pessoa a quem "abro o coração" e conto o que presenciei em um leprosário, nos idos dos anos 80.
Nesse momento, ao ouvir meu interlocutor, eu estava mais empolgado do que o Chaves ao ganhar um sanduíche de presunto. Inclusive, quase caímos em uma cratera, coisa nada comum em nossas maravilhosas estradas. Sem ressentimentos, vamos à história.
Naquela noite de lua cheia, Carlos tirou do arco-da-velha, uma daquelas histórias que me fazem lembrar da antológica frase atribuída a Shakespeare, a qual, diga-se de passagem, está na epígrafe desta idiossincrática e perene obra literária.
Retomando, sob os raios prateados do astro noturno, Carlos contou-me que, durante sua infância, algumas vezes, foi visitar sua avó materna, a qual, devido ao fato de ser portadora de hanseníase, residia no hospital leprosário de Itapuã.
Ocorre que, em uma de suas idas ao leprosário, descobriu que sua avó tinha arrumado um novo namorado, um sujeito que, segundo ele, era muito estranho. Sobre isso, incrustado na velha porta marrom de seu quarto, tinha um baita dum pentagrama. O que, obviamente, não prova nada, mas, na mente do Carlinhos, era um prato cheio para ele morrer de medo do cara que pegava sua querida vovozinha.
Pelo fato dela já estar com seus mais de setenta anos, com lepra, internada em um hospital por tempo indeterminado, praticamente com o pé na cova e mesmo sob tais circunstâncias encontrar alguém para viver uma história de amor, sem dúvida, é motivo de efusiva comemoração.
Sob esse olhar, se eu pudesse, agora mesmo, colocaria a música tema do filme Titanic para te ajudar a imaginar a cena dos dois pombinhos namorando.
Essa senhora, só queria curtir o pouco tempo que ainda lhe restava no grande palco da existência, como bem diz Augusto Cury.
A filosofia da velhinha era simples e pragmática: lavou, tá nova! Em uma linguagem atual, a velhinha era braba.  Se ela ainda estivesse entre nós, diria: vamo dá-lhe! Dane-se! Já estou quase desencarnando, mesmo. Sendo assim, vou derreter e esfarelar o salgado, neste caso: a salgada.
Inclusive, dizem as más línguas que ela tinha mais horas de cama que urubu de vôo. Sacanagem falar dos mortos, principalmente de uma senhora tão generosa. Bem, pelo menos, eles não nos processam por levarmos alegria às pessoas através do humor, nem nos acusam de sermos os protagonistas de piadas jocosas.

Natural de Alvorada, RS, Deodato Júnior é motorista de aplicativo e palestrante. Criativo e versátil, o autor costuma criar diferentes pseudônimos para suas obras. É o caso de Salomaucriado para os livros O Lobisomem do LeprosárioProvérbios de Salomau e Teste Vocacional para Motoristas de Aplicativo.
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Conto publicado, em 2024, no livro O LOBISOMEM DO LEPROSÁRIO, coletânea de contos, Editora Meia-noite. 

 

O LOBISOMEM DO LEPROSÁRIO (Parte II)

Observe que nunca é tarde para o amor. Outra coisa: lembre-se que, sempre há um chinelo velho, disponível para um pé torto. Isso faz sentido? É claro que isso não se aplica a você e sim, sobre a pessoa que, um dia, já foi o amor de sua vida e hoje, de príncipe, foi promovido a sapo. No entanto, é sempre bom lembrar de um adágio popular que revela o quanto o mundo dá voltas: É melhor ter e não precisar, do que precisar e não ter”. Pense nisso e não esqueça que, mais dia, menos dia, a lei da gravidade também vai te pegar. Entendedores, entenderão.
Sem mais digressões, vamos focar no cerne da história e deixar dona Clotilde descansar em paz, ou não…
Nesse momento, passamos por um posto de gasolina e Carlos me pediu para aguardar cinco minutos até ele comprar uma carteira de cigarro. Mano, não é todo dia que ocorre do passageiro, além de te contar uma história inesquecível, ainda te pagar um café. Sim, senhoras e senhores, o homem comprou um cafezinho para mim, e, enquanto ele fumava, eu tomava minha água mineral, porque a bendita da máquina enguiçou, não quis me entregar o líquido precioso de todo bom motorista e tive que fazer um brique com a moça do caixa.
Para fechar todas, o app, abandonado, sozinho, dentro do carro, me perguntava: está tudo bem com você? Você está parado há tanto tempo, que estou preocupado! Chamo a polícia ou o IGP?
Não é preciso dizer que só visualizei a mensagem um ano depois, após meu confidente fumar e exaurir a história com especificidade, em meio a névoas de nicotina. Tô nem aí! Qual o jornalista que vai brigar com a fonte ao receber um "furo" e tanto? Por mim, ele podia fumar até Chanceler que eu esperaria de boa, desde que, me contasse uma história que valesse a pena, que fosse digna de tornar-se perene.
Agora vai… Não te revolta comigo! Já disse que a culpa é do Machado. Uma vez que descobri a metalinguagem, não consigo parar de usar a danada. Agora foca no essencial, Salomau e deixa de ser um Rolando Lero. 
Assim, voltemos ao hospital e vamos acompanhar o menino Carlinhos passar por um trauma jamais visto.
Nesse ínterim, encostado em um totem no posto Ipiranga, na capital da solidariedade, entre uma e outra tragada, como Arnold Schwarzenegger com seus charutos, Carlos lavou a alma.
Ele me contou que, em uma discussão entre sua mãe e o senhor estranho que namorava sua avó, o menino foi tentar convencer sua progenitora a voltar para casa, pois, morria de medo do homem, não só pelo pentagrama na velha porta marrom, mas, principalmente, porque os olhos do ancião tinham um brilho diferente e assustador. Além, é claro, dele ser todo peludão, tipo Tony Ramos. O que, obviamente, também não prova nada, pois, são apenas falácias, ilações e intriga da oposição, nobres excelentíssimos menestreis, de uma república de bananas, feita sob medida para Inglês ver e pobre sofrer do primeiro ao quinto, enquanto vocês enchem suas burras com nosso suado dinheirinho. O Brasileiro merece ser estudado pela NASA, não é mesmo?
Retomando, ocorre que, ao caminhar pelo estreito corredor de parquet, rodeado em ambos os lados por quadros com as fotos dos gestores que por ali passaram, todos mortos, diga-se de passagem, ouviu sons de passos vindo em sua direção.
Naquele momento em que, segundos parecem durar uma eternidade, nosso protagonista viu uma sombra gigantesca incidir sobre si, projetando a imagem de um híbrido muito próximo ao que, nos tradicionais contos, é apresentado como lobisomem.
Devagar, bem devagar, o menino correu os olhos de baixo para cima e o que viu, lhe encheu ainda mais de terror. Ele contou-me que os pés da criatura pareciam patas de vaca. Suas pernas peludas e musculosas lhe instigaram uma indescritível sensação de incapacidade de fugir de sua presença. Da cintura pra cima, ele era uma mistura de homem, cachorro e porco. E o que dizer da cabeça do monstro? Segundo Carlos, era uma aberração, tão diferente e hibridizada, que fica bem difícil descrever.
Neste momento que mais pareceu uma eternidade, "o ser" fitou Carlos longamente, com seus olhos vermelhos flamejantes, dirigindo um olhar gélido, cruzando com os olhos de uma indefesa criança de apenas doze anos. Sabe aquele olhar de profunda reprovação, ou melhor: um olhar de Coach, te dizendo que tu não passa de um hosta? Isso mesmo! Um abraço, Pablito! Toma o que te mandaram, Pablin! Coach picareta! Ou não…
Como se não bastasse, não contente em intimidar pelo olhar, bafejou fortemente pelas ventas peludas sobre o peito do pobre infante, quase derrubando-o com o impacto do bafo do Ledesma e fazendo o coitado do guri ter um prolapso retal. Foi de cair o butiá das calças, literalmente! Misericedo, Miseriqueima, Misericórdia!
Depois de deixar nosso protagonista todo borrado, a aberração passou por ele e saiu marchando para o vasto campo de artemisia, enquanto os raios luminosos do disco prateado iluminavam o complexo.
Quando finalmente conseguiu se mover, Carlinhos caminhou pelo sinistro corredor do leprosário, entrou pela porta deixada aberta pela nefasta criatura e encontrou sua mãe e avó abraçadas, chorando copiosamente e nem sinal do namorido de sua vovozinha.
Ao ligar os pontos, Carlos concluiu o pior e isso deixou nosso menino catatônico e bloqueado, sem conseguir falar sobre, com ninguém, por longos anos.
Forte, muito forte, varão! Manto, terra, fogo, água e ar, muito ar! Vamo dá-lhe! Beba água, meu filho! Uber não é comédia! Uber também é cultura!  Vira Uber, pô! Reeeeeeeceeeeeeeeeba o link! Desculpe, TDAH misturado com tourette e HB20 é coisa braba, muito braba. Foca na foca, Salomau. Amém!
Finalizando, até que, em uma Quinta-feira, noite de lua cheia, ao entrar em um HB20 preto e conhecer um Uber Alvoradense, que não estava ali para julgar o mérito de sua experiência, nem examinar sua história sob suas lentes teológicas, abriu o coração e contou-me um inesquecível depoimento sobre nada mais, nada menos que um baita dum lobisomem e o enorme assédio moral por ele imposto sobre um indefeso guri de apartamento, no leprosário de Itapuã.

Natural de Alvorada, RS, Deodato Júnior é motorista de aplicativopalestrante. Criativo e versátil, o autor costuma criar diferentes pseudônimos para suas obras. É o caso de Salomau, criado para os livros O Lobisomem do LeprosárioProvérbios de Salomau e Teste Vocacional para Motoristas de Aplicativo.
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Conto publicado, em 2024, no livro O LOBISOMEM DO LEPROSÁRIO, coletânea de contos, Editora Meia-noite.