quinta-feira, 24 de abril de 2025

 

TESOURA (Parte II)

 Desculpa ter vindo atrás do senhor. — A menina disse, incerta. Observou o vestido.  Como é bonito! Da sua esposa?
—  Sim... minha filha usou também, bem depois.
 Ah. Posso devolver amanhã? A tesoura.
— Pode.
—  Tá bom.  A moça colocou o casaco sobre a cabeça, correu para fora do galpão e foi embora.
Ficou olhando por um tempo a menina dando pulinhos, escapando de poças d’água, desaparecendo do outro lado da estrada. Voltou a entrada de casa. O chimarrão estava frio, tomou o mate mesmo assim, voltou a cozinha, aqueceu a água, sentou-se. O gato subiu em seu colo. A chuva aumentou, a sensação de abafamento diminuiu um pouco. Um carro passou pela estrada, deu algumas buzinadas, como se o cumprimentasse e logo depois sumiu. Ouviu um barulho alto, parecido com tum. Continuou sentado, acariciando o gato. Outro carro veio de uma das casas, um ou outro morador passou correndo pela estrada. Não se moveu. Já imaginava o que tinha acontecido, torcia apenas que o motorista e quem estivesse junto não tivesse se machucado muito. Dormiu, o som indistinto de pessoas falando se misturou.
Estava tarde, não tinha mais o gato no colo, estava sozinho. Tinha esfriado, levantou-se da cadeira com dificuldade. Só quando acordou se perguntou porque precisavam de uma tesoura de poda com aquele mal tempo reinante. Depois foi ao banheiro, precisava tomar algo pra dor. Antes, muitos anos antes, teria ouvido reprimendas por se deixar demorar tanto para tomar algum remédio. Ele esquecia, tolerava a dor, era isso. Não, você tem que se cuidar, como vai deixar ficar desse jeito, parece que manca. Vai me deixar cedo assim. Com pesar, lembrou que ela se foi muito tempo antes dele. Vivia indo ao médico, tinha uma saúde de ferro, dizia, mas então certa noite disse boa noite e não mais disse bom dia. Não pensava nisso com desdém, era o contrário. Achava injusto estar ali sozinho.
A filha... a custo tirou a lembrança que era como uma única rosa no centro de um espinheiro. Doía muito lembrar dela. Tão bonita, tão feliz. Não quero lembrar, não vou. O quadril doeu quando andou pela casa, ficou feliz por isso, já que tinha no que se focar. Tomou o remédio, o gato, retornado sabe-se lá de onde, deu voltas ao redor de suas pernas. Com esforço se abaixou, acariciou o pelo macio, agradeceu a Deus pela companhia. Foi ao quarto, tinha uma bíblia no criado mudo. Olhou um pouco para o livro, tão sagrado para alguns, nem tanto para ele. Deixou onde estava. Tinha uma grossa camada de poeira. Todo dia olhava para o livro, todo dia o deixava onde estava.
Estava frio em pleno verão, o sol estava escondido pelas nuvens, encabulado demais para se apresentar em um dia chuvoso, ninguém vai casar hoje, nem viúvas, nem espanhóis. Não riu da piada boba, apenas voltou a cadeira, depois de esquentar mais uma chaleira de água e fazer um novo chimarrão. O remédio tinha ajudado, a dor era mais suave, mas agora lembrava que não tinha almoçado, já era tarde, quase perto da seis, ainda que durante todo o dia tivesse parecido assim, sombrio, como se a noite ameaçasse chegar muito mais cedo. Era seu relógio interno que dizia sem precisar olhar as horas, que lhe acordava antes das cinco, que lhe dizia quando anoitecia. A pergunta que vinha se fazendo era para que? Não trabalhava mais, não tinha mais esposa, nem filha, nem neto, nem genro, todos se foram. Ficou apenas ela, sem mais almoços em família, sem ninguém com quem conversar, talvez a exceção de quem precisasse de uma tesoura de poda em um dia de chuva, mas senão... mais ninguém. Não lembrava da última vez que tinha feito um churrasco, os amigos de infância moravam todos no mesmo endereço agora. Sobrara ele, sozinho, sentado na frente de casa com a camisa social branca de tecido puído, as calças de linho curtas demais e suas alpargatas gastas.
Tomou o chimarrão sozinho, ensimesmado, levou um susto quando o gato pulou em seu colo. Tinha passado muito tempo e ele devia ter cochilado. Continuava chovendo, continuava esfriando e ele continuava sozinho. O gato o contrariou, lambeu seus dedos e depois se aninhou em seu colo. Não tão sozinho. Não vou levantar agora, gato, só pra você dormir um pouco. É bom você continuar por aqui. Prometo que te dou algum lanche gostoso amanhã.
Mais tarde, quando o gato saiu para o pátio e ele se perguntou o que ele iria querer fazer na rua com aquele tempo, foi para a cama, trocou a roupa, pôs um pijama que sua falecida lhe havia feito. Era tão velho e puído quanto as outras roupas, mas ela tinha feito e ele não conseguia se desfazer. Sentou na beira da cama, já era noite, já estava tarde, já estava cansado, já se perguntava se seria essa a noite, aquela em que não daria mais nenhum bom dia.
Não foi.
O dia seguinte, o mesmo ritual, as mesmas dores, o mesmo levantar devagar, a mesma cadeira. Ficou na frente de casa, com os olhos fechados, sentado na cadeira confortável.
—  Oi!
Levou um susto. Era a mesma menina do dia anterior. Não chovia e ela estava com a tesoura.

 (Continua...)


Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plaggo Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).  
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Conto, do autor, TESOURA.
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