TESOURA (Parte II)
— Desculpa ter vindo atrás do senhor. — A menina disse, incerta.
Observou o vestido. — Como é bonito! Da sua esposa?
— Sim... minha filha usou também, bem depois.
— Sim... minha filha usou também, bem depois.
— Ah. Posso devolver amanhã? A
tesoura.
— Pode.
— Pode.
— Tá bom. — A moça colocou o
casaco sobre a cabeça, correu para fora do galpão e foi embora.
Ficou olhando por um tempo a
menina dando pulinhos, escapando de poças d’água, desaparecendo do outro lado
da estrada. Voltou a entrada de casa. O chimarrão estava frio, tomou o mate
mesmo assim, voltou a cozinha, aqueceu a água, sentou-se. O gato subiu em seu
colo. A chuva aumentou, a sensação de abafamento diminuiu um pouco. Um carro
passou pela estrada, deu algumas buzinadas, como se o cumprimentasse e logo
depois sumiu. Ouviu um barulho alto, parecido com tum. Continuou sentado,
acariciando o gato. Outro carro veio de uma das casas, um ou outro morador
passou correndo pela estrada. Não se moveu. Já imaginava o que tinha
acontecido, torcia apenas que o motorista e quem estivesse junto não tivesse se
machucado muito. Dormiu, o som indistinto de pessoas falando se misturou.
Estava tarde, não tinha mais o
gato no colo, estava sozinho. Tinha esfriado, levantou-se da cadeira com
dificuldade. Só quando acordou se perguntou porque precisavam de uma tesoura de
poda com aquele mal tempo reinante. Depois foi ao banheiro, precisava tomar
algo pra dor. Antes, muitos anos antes, teria ouvido reprimendas por se deixar
demorar tanto para tomar algum remédio. Ele esquecia, tolerava a dor, era isso.
Não, você tem que se cuidar, como vai deixar ficar desse jeito, parece que
manca. Vai me deixar cedo assim. Com pesar, lembrou que ela se foi muito tempo
antes dele. Vivia indo ao médico, tinha uma saúde de ferro, dizia, mas então certa
noite disse boa noite e não mais disse bom dia. Não pensava nisso com desdém,
era o contrário. Achava injusto estar ali sozinho.
A filha... a custo tirou a
lembrança que era como uma única rosa no centro de um espinheiro. Doía muito
lembrar dela. Tão bonita, tão feliz. Não quero lembrar, não vou. O quadril doeu
quando andou pela casa, ficou feliz por isso, já que tinha no que se focar.
Tomou o remédio, o gato, retornado sabe-se lá de onde, deu voltas ao redor de
suas pernas. Com esforço se abaixou, acariciou o pelo macio, agradeceu a Deus
pela companhia. Foi ao quarto, tinha uma bíblia no criado mudo. Olhou um pouco
para o livro, tão sagrado para alguns, nem tanto para ele. Deixou onde estava.
Tinha uma grossa camada de poeira. Todo dia olhava para o livro, todo dia o
deixava onde estava.
Estava frio em pleno verão, o sol
estava escondido pelas nuvens, encabulado demais para se apresentar em um dia
chuvoso, ninguém vai casar hoje, nem viúvas, nem espanhóis. Não riu da piada
boba, apenas voltou a cadeira, depois de esquentar mais uma chaleira de água e
fazer um novo chimarrão. O remédio tinha ajudado, a dor era mais suave, mas
agora lembrava que não tinha almoçado, já era tarde, quase perto da seis, ainda
que durante todo o dia tivesse parecido assim, sombrio, como se a noite
ameaçasse chegar muito mais cedo. Era seu relógio interno que dizia sem
precisar olhar as horas, que lhe acordava antes das cinco, que lhe dizia quando
anoitecia. A pergunta que vinha se fazendo era para que? Não trabalhava mais,
não tinha mais esposa, nem filha, nem neto, nem genro, todos se foram. Ficou
apenas ela, sem mais almoços em família, sem ninguém com quem conversar, talvez
a exceção de quem precisasse de uma tesoura de poda em um dia de chuva, mas
senão... mais ninguém. Não lembrava da última vez que tinha feito um churrasco,
os amigos de infância moravam todos no mesmo endereço agora. Sobrara ele,
sozinho, sentado na frente de casa com a camisa social branca de tecido puído,
as calças de linho curtas demais e suas alpargatas gastas.
Tomou o chimarrão sozinho,
ensimesmado, levou um susto quando o gato pulou em seu colo. Tinha passado
muito tempo e ele devia ter cochilado. Continuava chovendo, continuava esfriando
e ele continuava sozinho. O gato o contrariou, lambeu seus dedos e depois se
aninhou em seu colo. Não tão sozinho. Não vou levantar agora, gato, só pra você
dormir um pouco. É bom você continuar por aqui. Prometo que te dou algum lanche
gostoso amanhã.
Mais tarde, quando o gato saiu
para o pátio e ele se perguntou o que ele iria querer fazer na rua com aquele
tempo, foi para a cama, trocou a roupa, pôs um pijama que sua falecida lhe
havia feito. Era tão velho e puído quanto as outras roupas, mas ela tinha feito
e ele não conseguia se desfazer. Sentou na beira da cama, já era noite, já
estava tarde, já estava cansado, já se perguntava se seria essa a noite, aquela
em que não daria mais nenhum bom dia.
Não foi.
O dia seguinte, o mesmo ritual, as
mesmas dores, o mesmo levantar devagar, a mesma cadeira. Ficou na frente de
casa, com os olhos fechados, sentado na cadeira confortável.
— Oi!
Levou um susto. Era a mesma
menina do dia anterior. Não chovia e ela estava com a tesoura.
Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plagg: o Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).
_________________________
Conto, do autor, TESOURA.
*CLIQUE NAS PALAVRAS COLORIDAS (BIOGRAFIA).
Nenhum comentário:
Postar um comentário