TESOURA (Parte Final)
— Bom dia. — Disse.
— Vim devolver
a tesoura.
— Ah, tudo bem.
Não tinha pressa.
— O pai já
usou, não queria abusar.
— Tá certo.
A moça devolveu
a tesoura e ficou ali parada no pátio. Depois falou.
— Eu estou de
férias, aqui é tão parado.
— Sim, é
parado.
— O seu gato é
muito bonito.
— É meu
companheiro, sabe? Veio pra cá e nunca mais foi embora.
— O senhor
sempre morou aqui?
— Sempre.
— E conhece
muita história daqui?
Ele pensou um
pouco. Conhecia um pouco de tudo, desde fofocas antigas que sua mulher lhe contava,
a segredos de amigos há muito mortos e muitas lendas dali e de algumas outras regiões.
Contou exatamente isso a menina.
— Que legal! O
senhor me conta?
— Conto o que?
— Uma história!
— Mas... você
não prefere fazer outra coisa por aí?
— Eu posso...,
mas aqui é tão parado. Então... acho que uma ou outra história vai ser algo bom
pra passar o tempo.
Ele olhou para
a menina, não estava fazendo troça. Levantou com dificuldade, foi até a
cozinha, pegou uma outra cadeira e a colocou na varanda um pouco distante da
dele. Ofereceu a cadeira à moça. Ela sentou-se.
— Bebe
chimarrão?
— Bebo. — Respondeu sorrindo.
— Já ouviu a
respeito da dama na caverna? — Perguntou um pouco sem jeito, entregando a cuia
à menina.
— É da Salamanca
do Jarau?
— Não, essa é
outra. Essa que falei é lá de Santa Cruz... um amigo me contou. Falava como se
fosse verdade.
— E o que o
senhor acha?
— Que é uma
história boa, seja verdade ou não.
— Então me
conta.
Era início da
tarde, dessa vez tinha almoçado, o gato veio, sabe-se lá de onde, como sempre,
e pulou no colo da visita. Não estava mais chovendo, o céu ainda estava
nublado, mas o sol ensaiava alguns raios de luz aqui e ali. Ele contou a
história, ela agradeceu quando terminou e pediu outra. No outro dia, o pai dela
veio, e junto deles, o irmão mais novo. Contou outra história, um bêbado da
cidade que um dia recuperou o juízo e jurava que tinha domado a mula sem cabeça.
Depois, de vez em quando, vinham todos, ele aprendeu seus nomes, eles o dele, o
tratavam bem, às vezes almoçavam ou lhe buscavam pra almoçar. Contou muitas
histórias, e a menina trouxe um caderno, anotava, anotava. O gato sentava em
mais colos, à noite o velho ia dormir pensando que seria bom poder dar mais um
bom dia. Nunca abriu a bíblia que tinha na cabeceira da cama, mas achava que se
alguma coisa tinha mudado, talvez tivesse a ver com ela. Talvez. Mas,
normalmente, pensava que tudo tinha a ver com uma tesoura, e durante o tempo
que lhe restou — e foram muitos os “bom dia” que pôde dar - nunca perguntou
porque precisaram dela em um dia de chuva.
Ben Schaeffer é escritor, advogado e contador. Natural de Porto Alegre, reside em Alvorada, RS. Ávido leitor, lê vários gêneros, desde livros de ficção científica, de fantasia e de mistério até histórias em quadrinhos. É autor do livro Dan Plagg: o Porto das Bruxas e da série Histórias do Reino de Puphantia (O Grande Assalto e Os Fantasmas de Puphantus).
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Conto, do autor, TESOURA.
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